INSTITUTO FREIDIANO DE ESTUDOS PSICANALÍTICOS

sexta-feira, 13 de junho de 2014

As cartas inéditas de Freud

( Traduções de Luis Krausz / Revista Cult )
Parte I
De Freud para Martha
Teatrinho de máscaras
07 de agosto de 1882
Amada pequena menina,
Os astrônomos afirmam que as estrelas que hoje vemos reluzir começaram a arder há centenas de milhares de anos e talvez hoje estejam se extinguindo.
Tal é a dimensão de distância que nos separa delas, até mesmo para um raio de luz que, sem se cansar, percorre mais de 40.000 milhas em um segundo.
Sempre foi difícil para mim imaginar isso, mas agora posso fazê-lo com facilidade quando penso como você sorri diante de minhas cartas cordiais, enquanto minha alma sofre com dúvidas e preocupações, e quando penso como você se aborrece com a minha dureza e a minha desconfiança, enquanto uma medida de ternura, que luta em vão para se expressar, me preenche.
Há dois caminhos para evitar esta incongruência.
O primeiro seria me abster de relatar uma atmosfera que supostamente não vai duram nem uma semana.
O outro seria fazê-lo mantendo um olhar sereno, acima do teatrinho de mascares que a vida vai encenando conosco.
Desprezamos o primeiro caminho, o caminho da preservação, porque ele pode acabar levando ao estranhamento.
Por isso, somos obrigados a fazer aquilo que o segundo caminho nos recomenda.
Imagine que cada duas horas dos quatro dias que se passam entre a minha pergunta e a sua resposta — não, mais 64 das 96 horas — estendessem a tal ponto por meio de pensamentos confusos a respeito de você que a pobre pessoa por fim não fosse mais capaz de distinguir esse intervalo de tempo de um mês ou de um ano.
Imagine quão vazios e, consequentemente, quão breves pareceriam os milênios durante os quais não pensamos em nada, e então você será forçada a admitir que o atraso dos acontecimentos que interessam ao astrônomo não será maior do que aquele que nós dois somos forçados a suportar por causa de seu veraneio em Wandsbeck.
O que nós, ligados de maneira tão íntima e tão insolúvel, teremos que fazer quando acontecer entre nós algo como aquilo que constituía o conteúdo de minhas últimas cartas.
Se eu não estiver fisicamente exausto, vou empurrar para um segundo plano as poucas lembranças incômodas associadas aos meus esforços por você e me alegrar pensando em tudo de bom e de belo que vi em você, e em todos os sacrifícios que você fez por mim até hoje.
Você vai habituar-se a continuar amando o pobre homem, apesar de sua antipatia, de seus maus humores esporádicos e de seus julgamentos equivocados, e continuaremos a caminhar juntos alegremente.
Se não me engano, hoje efetivamente você não é capaz de dedicar a mim todo o seu amor sem alguma dificuldade, e à custa de autocontrole — e eu só serei capaz de sorrir, ciente de minha vitória, quando você finalmente se tornar minha, seguindo o curso inevitável da natureza, como eu pretendia desde o começo.
Por isso alegre-se, amada Marthinha, o tempo há de chegar — se é que ainda não chegou — no qual tudo aquilo a que um dia você concedeu uma parte de sua estima se tornará uma sombra que não vai perturbá-la mas do que a mim mesmo.
Em breve, terei que retomar meu trabalho, que por meio de um hábito seguido com pontualidade primeiro se torna suportável e depois pode tornar-se estimado.
Tenho diante de outros principiantes a vantagem de uma maturidade maior, e de maior consideração por parte dos superiores.
Atualmente falta-me a confiança que vem de habilidades conquistadas pelo hábito constante, porém não me faltam conhecimentos teóricos nem a capacidade de observar o corpo humano como um simples objeto, sem me intimidar com as dores dos pacientes.
Durante os poucos dias nos quais me dediquei à cirurgia, realizei algumas pequenas operações com o bisturi, coloquei algumas ataduras com gesso e, por duas vezes, conduzi a anestesia de pacientes por meio de clorofórmio.
Das atividades que realizei, está última é certamente a mais desagradável, pois a morte súbita durante a anestesia por clorofórmio, esse acontecimento temido por todos e incontrolável, faz com que o médico fique em estado permanente de excitação nervosa.
No quarto que me foi designado encontra-se também um menino pobre e perdido, cuja perna precisa ser diariamente lavado com o maior cuidado antes que seja trocado seu curativo, e eu não escapo dessa atividade desagradável e de pouco sucesso.
Os próximos três meses no departamento de cirurgia certamente vão melhorar visivelmente minha habilidades e, se alguma vez eu tiver de retirar do mais lindo dos olhos um grãozinho de poeira, as dores que a querida menina terá de enfrentar nessa grande operação serão muito mais suaves.
Sorte de quem puder em breve ver estes olhos lindos reluzindo de amor !
Agora infelizmente Eli está tão apaixonado por Fritz que ele também não consegue largar de Martha e esse novo amor me custa tanto sofrimento quanto o anterior.
Um consolo são agora as três irmãs iniciadas, que sempre conversam, e com as quais pode-se falar de Martha, e que me parecem melhores e mais maduras, como se entendessem como a nossa vida mudou.
Elas também contam algumas coisas com as quais se poderia provocar a Marthinha num momento alegre, por exemplo como ela nos criticou uma vez na casa dos Weiss, e eu sou obrigado a rir quando me lembro quanto ele foi castigada por isso.
Amanhã voltarei a escrever uma cartinha, o dia de hoje é tão irritante e perturbador.
Vamos fazer com que passe depressa, para dar lugar a um outro, melhor.
Com cordiais saudações à única e querida menina amada,
Teu Sigmund.
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De Martha para Freud
O amor encarnado
30 de agosto de 1882
22:45 hs.
As profundezas da minha alma percorre, como silenciosa prece noturna, um doce pensar em ti.
Você certamente conhece os encantadores e tristonhos Schilflieder ( Cânticos dos Juncos ) de Lenau, meu amado ? imagine que estou sozinha ( só John está sentado à minha frente, desenhando ).
Os outros foram, todos, a mais um casamento, para o qual eu também tinha sido insistentemente convidada.
Mas resisti bravamente e fiquei em casa.
Aquele que teria sido meu anfitrião é um senhor de boa índole, muito bem-humorado que certamente está indignado com o fato de eu ter declinado do convite. Creio que possa bem imaginar quem era, se fizer um pouco de esforço, certo, meu amado ?
Pode rir-se de sua menina tão cheia de si.
Eu estou contente por não ter ido e de não ter sido forçada a participar, mais uma vez, de toda aquela confusão, como no outro dia — e por poder, agora, pensar em você sem ser perturbada, e poder escrever para você, meu doce amigo.
À tarde tive a companhia de minha prima Anna, que veio me ver por estar com pena de mim, e que ficou até agora há pouco, e depois trabalhei no pequeno volume de cartas que prometi a você.
Seu doce nome está ali, assim como a data “ conhecida ”, para que não seja esquecida — ah !, meu amado, trata-se de uma oferenda humilde se comparada a todos os presentes preciosos que já ganhei de você, mas sei que você não faz contas comigo, e, assim que eu puder dispor de um pouquinho mais de sossego para mim mesma, você receberá um trabalho bem-feito, um verdadeiro “ amor encarnado ” de mim, sim, você está satisfeito com isso e conseguirá ter paciência suficiente ?
Sim, agora John também já foi se deitar, agora eu estou totalmente sozinha.
Faz-se um grande silêncio, a chuva murmura fora, monótona e melancólica, e dentro de casa nada se move.
Agora, meu amado — agora quero beijar você com o meu coração e sussurraria tantas coisas em seu ouvido que pareceriam tão tolas e loucas no papel — ninguém nos ouvia e ninguém nos via, e nem mesmo um esquilo curioso e envergonhado nos perturbava — , mas não quero sobrecarregar meu coração com pensamentos de como tudo poderia ser ainda mais bonito — eu amo você também de longe e me alegro como uma criança com suas doces cartinhas “ pacíficas ”- sim, isso também há de passar logo.

150 milhas de distância
Há seis ou oito dias que me vejo obrigada a dirigir meus cânticos de alegria  ou  de lamento a um “ mudo ” — graças aos céus só “ mudo ”, mas não surdo, eu quase diria, não, e tampouco a um cego, pois você é capaz de ler o que eu escrevo, e então eu tenho total “ liberdade de fala ”, você nem mesmo tem a chance de brigar, quando você não está satisfeito, quando eu digo algo que não lhe agrada, que maravilha !
E, se por acaso ocorrer a você duelar comigo depois, isso também não será possível, e sua boca será fechada — você já sabe com o quê.
Ah, meu amado, meu único, nós vamos continuar a nos entender bem quando não houver 150 milhas a nos separar, não é verdade ? ( … )
E agora o novo endereço para as suas cartas, não consigo me acostumar a fazer seu nome ceder o primeiro lugar a um título.
 Sob qual ou junto a qual professor você se encontra agora, meu amado ?
E continua no departamento de cirurgia ?
E você está esperando se acostumar ao trabalho aos poucos, não é, meu amado, em vez de se atirar com todas as forças, outra vez, nessa nova atividade ?
Me desculpe pela intromissão, mas fico tão feliz em saber que você está recuperado e saudável ! Vamos permanecer assim, enquanto pudermos.
E agora boa noite. Acho que há muito já se passou a hora dos espíritos, e vejo que estou bem cansada.
E me ocorre que já não vou receber a resposta a esta carta. Terrível !
Fique bem, meu amado, fique feliz e alegre como

Sua Martha.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Depressão – Modelo Psicanalítico


CURSO LIVRE DE CAPACITAÇÃO EM PSICANÁLISE
A SPOB-RS está com as inscrições abertas para o Grupo VIII de formação de psicanalistas.


Tentando sistematizar o distúrbio maníaco-depressivo, em 1911, Abraham comparou a depressão com o luto por nojo (isto é, pela perda de um ser querido). Segundo este autor, a diferença essencial entre aquela e este reside em que a pessoa afetada pelo luto por nojo está consciente da sua preocupação pela perda de um ser querido e, por sua vez, o indivíduo depressivo está imerso em imprecisos sentimentos de perda, de culpa e de pouca auto-estima. De acordo com este autor, podemos dizer que o indivíduo depressivo interioriza a perda como uma repulsão de si próprio e confunde-a ou relaciona-a inconscientemente com as suas próprias experiências anteriores.

Na sua teoria psicanalítica Freud aprofundou as idéias de Abraham com o propósito de dotar a depressão de um corpo teórico. Para Freud a diferença fundamental entre o luto por nojo e a depressão está em que nesta última a pouca auto-estima é um sintoma, e além disso a perda é inconsciente, diversamente do luto por nojo, em que a perda é consciente.
Segundo Freud o indivíduo depressivo também sofre uma perda, mas é simbólica e não se relaciona com a pessoa perdida. Noutras palavras, a tendência a culpabilizar-se e as autocríticas do indivíduo depressivo estão dirigidas realmente, de maneira inconsciente, à pessoa perdida. O indivíduo depressivo assume os atributos que reconhecia nessa pessoa. E a partir desse momento a depressão converte-se num processo narcisista dirigido para o interior da pessoa, em lugar de estar dirigido para o exterior.
Daqui surgem os traços característicos do paciente depressivo: o sadomasoquismo e a dependência oral, manifestando-se na necessidade da ajuda emocional que requer e pede este tipo de pacientes.

Mais tarde, Abraham desenvolveu os postulados teóricos de Freud e argumentou que existiam diversas dificuldades durante o processo evolutivo da infância que, por sua vez, davam lugar à aparição do mal-estar depressivo na idade adulta. Em geral, a origem destas dificuldades encontra-se na perda ou na falta de amor na criança. Isto dá lugar a uma fixação do desenvolvimento afetivo na fase oral, que explica ou implica a dependência de pessoas e acontecimentos portadores de gratificações afetivas.

Em 1948, Melanie Klein propôs e argumentou a favor de uma base psicodinâmica diversa para explicar o desenvolvimento da depressão. Segundo Klein, é durante o primeiro ano de vida das pessoas que se forma a base do que mais tarde pode ser o sofrimento depressivo. No entender de Klein todas as crianças atravessam um estado evolutivo a que chama posição depressiva e que, em sua opinião, está caracterizada por um período de tristeza, temores e culpa. Ao sentir-se frustrada pela carência ou pela perda do amor, a criança rebela-se contra a mãe e desenvolve fantasias de tipo sádico e destrutivo contra ela dirigidas. Esta situação provoca na criança estados de ansiedade e de culpa. Além disso, devido à incapacidade da criança para distinguir o mundo exterior (a sua mãe) do interior (ela própria) e das imagens que interioriza da mãe, tudo se transforma num intenso temor em autodestruir-se. Esta é a explicação de Klein da fase denominada posição depressiva.
A base patológica para a descoberta da depressão na idade adulta dá-se quando a criança não comprovou que a mãe que odeia e ama, simultaneamente, é a mesma pessoa. Isto, em termos psicanalíticos, é uma falha na interiorização do bom objeto interno.

Em 1953, Eduard Bibring destacou e deu uma importância primordial à perda da auto-estima como elemento chave da depressão. As suas idéias aproximavam-se mais da resposta consciente aos acontecimentos que aos conflitos inconscientes entre o eu e o super-eu. Mesmo quando estava de acordo em dar importância às experiências iniciais da infância como base para o desenvolvimento da depressão na idade adulta, sustentou que a depressão se desenvolve e se instaura como resultado da frustração das expectativas conscientes. Também divergia dos psicanalistas anteriores, crendo que as dificuldades no manejo dos sentimentos agressivos desempenham uma função primordial na origem da depressão.


segunda-feira, 9 de junho de 2014

Da Neurologia à Psicanálise - Desenhos Neurológicos e Diagramas da Mente por Sigmund Freud



A trajetória neurológica de Freud lançou os alicerces sobre os quais
ele pôde erguer o edifício da Psicanálise.Esta obra contém, além dos brilhantes textos, o extraordinário mérito de reunir a coleção de aproximadamente oitenta esboços de Freud, entre manuscritos, desenhos e diagramas da mente cujos originais se encontram distribuídos, em sua maioria, nos acervos do Museu Freud, em Londres, e da Biblioteca do Congresso,
em Washington. Antes da invenção da psicanálise, da cura pela palavra, o olhar de Freud esteve por muito tempo absorvido por imagens de estruturas do sistema nervoso que o mantinham ao microscópio durante horas. Essas imagens nutriam a imaginação do jovem cientista no esforço intelectual continuado junto ao admirado mestre, Ernest Brücke, para encontrar a lógica e os modelos que dessem conta de seu funcionamento. O estudante Freud, o jovem Freud, foi um neurocientista do século XIX. Este livro dá o testemunho disso, reunindo desenhos, esquemas, garatujas científicas, resultado do trabalho intelectual intenso em busca de um entendimento plausível para o aparelho nervoso. A transição da "máquina" neural para o aparelho da alma, o aparelho psíquico, quando já não mais trabalha ao microscópio, mas com pacientes neuróticos, carrega com ela estas imagens e modelos. A transmutação de um em outro, nas mãos do meticuloso observador, tem em seu cerne um inesperado peso reencontrado nas palavras, primeiro por seu poder na hipnose, a seu ver, o mesmo das curas milagrosas nas religiões e ritos, poder explorado desde sempre pelas culturas humanas; depois, ao avançar, criando o novo método de tratamento e, com ele, descobrindo a transferência e seu contraponto, a resistência, consegue cercar com mais precisão esse poder, tornando-o manejável e penetrando em seus meandros. Com a mesma linguagem gráfica, ou seja, com as mesmas categorias figurativas, cria, então, o modelo em que condensa as hipóteses fundamentais da Psicanálise, no escrito só publicado meio século mais tarde, após a morte do autor. Trata-se do Projeto para uma psicologia científica, texto hoje tão estudado e que, já numa linguagem mais abstrata, foi apresentado poucos anos depois como um aparelho ? comparado a um microscópio e às imagens virtuais que nele se formam ? para dar conta das características do trabalho que os sonhos produzem agindo sobre falas e representações recentes, entremeadas das mais longínquas e anódinas, como matéria em que toma forma, em que advém, o desejo inconsciente. Aparelho de sonhar, também aparelho dos processos em jogo no desenrolar da atividade psicanalítica..