( Traduções de Luis Krausz / Revista Cult )
Parte I
De Freud para Martha
Teatrinho de máscaras
07 de agosto de 1882
Amada pequena menina,
Os astrônomos afirmam que as estrelas que hoje
vemos reluzir começaram a arder há centenas de milhares de anos e talvez hoje
estejam se extinguindo.
Tal é a dimensão de distância que nos separa delas,
até mesmo para um raio de luz que, sem se cansar, percorre mais de 40.000
milhas em um segundo.
Sempre foi difícil para mim imaginar isso, mas
agora posso fazê-lo com facilidade quando penso como você sorri diante de
minhas cartas cordiais, enquanto minha alma sofre com dúvidas e preocupações, e
quando penso como você se aborrece com a minha dureza e a minha desconfiança,
enquanto uma medida de ternura, que luta em vão para se expressar, me preenche.
Há dois caminhos para evitar esta incongruência.
O primeiro seria me abster de relatar uma atmosfera
que supostamente não vai duram nem uma semana.
O outro seria fazê-lo mantendo um olhar sereno, acima
do teatrinho de mascares que a vida vai encenando conosco.
Desprezamos o primeiro caminho, o caminho da
preservação, porque ele pode acabar levando ao estranhamento.
Por isso, somos obrigados a fazer aquilo que o
segundo caminho nos recomenda.
Imagine que cada duas horas dos quatro dias que se
passam entre a minha pergunta e a sua resposta — não, mais 64 das 96 horas —
estendessem a tal ponto por meio de pensamentos confusos a respeito de você que
a pobre pessoa por fim não fosse mais capaz de distinguir esse intervalo de
tempo de um mês ou de um ano.
Imagine quão vazios e, consequentemente, quão
breves pareceriam os milênios durante os quais não pensamos em nada, e então
você será forçada a admitir que o atraso dos acontecimentos que interessam ao
astrônomo não será maior do que aquele que nós dois somos forçados a suportar
por causa de seu veraneio em Wandsbeck.
O que nós, ligados de maneira tão íntima e tão
insolúvel, teremos que fazer quando acontecer entre nós algo como aquilo que
constituía o conteúdo de minhas últimas cartas.
Se eu não estiver fisicamente exausto, vou empurrar
para um segundo plano as poucas lembranças incômodas associadas aos meus
esforços por você e me alegrar pensando em tudo de bom e de belo que vi em
você, e em todos os sacrifícios que você fez por mim até hoje.
Você vai habituar-se a continuar amando o pobre
homem, apesar de sua antipatia, de seus maus humores esporádicos e de seus
julgamentos equivocados, e continuaremos a caminhar juntos alegremente.
Se não me engano, hoje efetivamente você não é
capaz de dedicar a mim todo o seu amor sem alguma dificuldade, e à custa de
autocontrole — e eu só serei capaz de sorrir, ciente de minha vitória, quando
você finalmente se tornar minha, seguindo o curso inevitável da natureza, como
eu pretendia desde o começo.
Por isso alegre-se, amada Marthinha, o tempo há de
chegar — se é que ainda não chegou — no qual tudo aquilo a que um dia você
concedeu uma parte de sua estima se tornará uma sombra que não vai perturbá-la
mas do que a mim mesmo.
Em breve, terei que retomar meu trabalho, que por
meio de um hábito seguido com pontualidade primeiro se torna suportável e
depois pode tornar-se estimado.
Tenho diante de outros principiantes a vantagem de
uma maturidade maior, e de maior consideração por parte dos superiores.
Atualmente falta-me a confiança que vem de
habilidades conquistadas pelo hábito constante, porém não me faltam
conhecimentos teóricos nem a capacidade de observar o corpo humano como um
simples objeto, sem me intimidar com as dores dos pacientes.
Durante os poucos dias nos quais me dediquei à
cirurgia, realizei algumas pequenas operações com o bisturi, coloquei algumas
ataduras com gesso e, por duas vezes, conduzi a anestesia de pacientes por meio
de clorofórmio.
Das atividades que realizei, está última é
certamente a mais desagradável, pois a morte súbita durante a anestesia por
clorofórmio, esse acontecimento temido por todos e incontrolável, faz com que o
médico fique em estado permanente de excitação nervosa.
No quarto que me foi designado encontra-se também
um menino pobre e perdido, cuja perna precisa ser diariamente lavado com o maior
cuidado antes que seja trocado seu curativo, e eu não escapo dessa atividade
desagradável e de pouco sucesso.
Os próximos três meses no departamento de cirurgia
certamente vão melhorar visivelmente minha habilidades e, se alguma vez eu
tiver de retirar do mais lindo dos olhos um grãozinho de poeira, as dores que a
querida menina terá de enfrentar nessa grande operação serão muito mais suaves.
Sorte de quem puder em breve ver estes olhos lindos
reluzindo de amor !
Agora infelizmente Eli está tão apaixonado por
Fritz que ele também não consegue largar de Martha e esse novo amor me custa
tanto sofrimento quanto o anterior.
Um consolo são agora as três irmãs iniciadas, que
sempre conversam, e com as quais pode-se falar de Martha, e que me parecem
melhores e mais maduras, como se entendessem como a nossa vida mudou.
Elas também contam algumas coisas com as quais se
poderia provocar a Marthinha num momento alegre, por exemplo como ela nos
criticou uma vez na casa dos Weiss, e eu sou obrigado a rir quando me lembro
quanto ele foi castigada por isso.
Amanhã voltarei a escrever uma cartinha, o dia de
hoje é tão irritante e perturbador.
Vamos fazer com que passe depressa, para dar lugar
a um outro, melhor.
Com cordiais saudações à única e querida menina
amada,
Teu Sigmund.
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De Martha para Freud
O amor encarnado
30 de agosto de 1882
22:45 hs.
As profundezas da minha alma percorre, como
silenciosa prece noturna, um doce pensar em ti.
Você certamente conhece os encantadores e
tristonhos Schilflieder ( Cânticos dos Juncos ) de Lenau, meu amado ? imagine
que estou sozinha ( só John está sentado à minha frente, desenhando ).
Os outros foram, todos, a mais um casamento, para o
qual eu também tinha sido insistentemente convidada.
Mas resisti bravamente e fiquei em casa.
Aquele que teria sido meu anfitrião é um senhor de
boa índole, muito bem-humorado que certamente está indignado com o fato de eu
ter declinado do convite. Creio que possa bem imaginar quem era, se fizer um
pouco de esforço, certo, meu amado ?
Pode rir-se de sua menina tão cheia de si.
Eu estou contente por não ter ido e de não ter sido
forçada a participar, mais uma vez, de toda aquela confusão, como no outro dia
— e por poder, agora, pensar em você sem ser perturbada, e poder escrever para
você, meu doce amigo.
À tarde tive a companhia de minha prima Anna, que
veio me ver por estar com pena de mim, e que ficou até agora há pouco, e depois
trabalhei no pequeno volume de cartas que prometi a você.
Seu doce nome está ali, assim como a data “ conhecida
”, para que não seja esquecida — ah !, meu amado, trata-se de uma oferenda
humilde se comparada a todos os presentes preciosos que já ganhei de você, mas
sei que você não faz contas comigo, e, assim que eu puder dispor de um
pouquinho mais de sossego para mim mesma, você receberá um trabalho bem-feito,
um verdadeiro “ amor encarnado ” de mim, sim, você está satisfeito com isso e
conseguirá ter paciência suficiente ?
Sim, agora John também já foi se deitar, agora eu
estou totalmente sozinha.
Faz-se um grande silêncio, a chuva murmura fora,
monótona e melancólica, e dentro de casa nada se move.
Agora, meu amado — agora quero beijar você com o
meu coração e sussurraria tantas coisas em seu ouvido que pareceriam tão tolas
e loucas no papel — ninguém nos ouvia e ninguém nos via, e nem mesmo um esquilo
curioso e envergonhado nos perturbava — , mas não quero sobrecarregar meu coração
com pensamentos de como tudo poderia ser ainda mais bonito — eu amo você também
de longe e me alegro como uma criança com suas doces cartinhas “ pacíficas ”-
sim, isso também há de passar logo.
150 milhas de distância
Há seis ou oito dias que me vejo obrigada a dirigir
meus cânticos de alegria ou de lamento a um “ mudo ” — graças aos céus só
“ mudo ”, mas não surdo, eu quase diria, não, e tampouco a um cego, pois você é
capaz de ler o que eu escrevo, e então eu tenho total “ liberdade de fala ”,
você nem mesmo tem a chance de brigar, quando você não está satisfeito, quando
eu digo algo que não lhe agrada, que maravilha !
E, se por acaso ocorrer a você duelar comigo
depois, isso também não será possível, e sua boca será fechada — você já sabe com
o quê.
Ah, meu amado, meu único, nós vamos continuar a nos
entender bem quando não houver 150 milhas a nos separar, não é verdade ? ( … )
E agora o novo endereço para as suas cartas, não
consigo me acostumar a fazer seu nome ceder o primeiro lugar a um título.
Sob qual ou
junto a qual professor você se encontra agora, meu amado ?
E continua no departamento de cirurgia ?
E você está esperando se acostumar ao trabalho aos
poucos, não é, meu amado, em vez de se atirar com todas as forças, outra vez, nessa
nova atividade ?
Me desculpe pela intromissão, mas fico tão feliz em
saber que você está recuperado e saudável ! Vamos permanecer assim, enquanto
pudermos.
E agora boa noite. Acho que há muito já se passou a
hora dos espíritos, e vejo que estou bem cansada.
E me ocorre que já não vou receber a resposta a
esta carta. Terrível !
Fique bem, meu amado, fique feliz e alegre como
Sua Martha.