INSTITUTO FREIDIANO DE ESTUDOS PSICANALÍTICOS

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O interesse psicológico da psicanálise


                    


Capítulo I



A psicanálise é um procedimento médico que aspira à cura de certas formas do nervosismo (neurose). Em um trabalho publicado em 1910 já descrevi a evolução da psicanálise desde seu ponto de partida no método catártico, de J. Breuer, e suas relações com as teorias de Charcot e P. Janet.
Como exemplos das formas patológicas acessíveis à psicanálise podem ser citados as convulsões e inibições da histeria e os diversos sintomas da neurose obsessiva (atos e idéias obsessivas). Trata-se de estados que desaparecem às vezes espontaneamente e respondem de um modo caprichoso, até agora inexplicado, à influência pessoal do médico. Nas formas graves das perturbações mentais propriamente ditas a psicanálise não alcança resultado positivo algum. Mas tanto nas psicoses1 como nas neuroses nos facilita pela primeira vez na história da medicina uma visão das origens e o mecanismo desses distúrbios.
Esta importância médica da psicanálise não justificaria a tentativa de apresentá-la em um círculo de estudiosos interessados pela síntese das ciências, e muito menos quando tal tarefa pareceria prematura enquanto uma grande parte dos psiquiatras e neurólogos continuem mostrando-se oposta ao novo método do terapêutico e rechace tanto suas hipóteses como seus resultados. Se, não obstante, considero legítima esta tentativa é porque a psicanálise aspira a interessar a praticante da ciência distintos dos psiquiatras, pois se estende a outros vários setores científicos diferentes e estabelece entre estes e a patologia da vida psíquica relações evidentes.
Deixarei, pois, de lado, por agora, o interesse médico da psicanálise e tratarei de demonstrar, com uma série de exemplos, minhas afirmações anteriores sobre nossa jovem ciência.
Tanto na pessoa normal como naquelas que apresentam distúrbios tropeçamos com uma série de expressões mímicas e verbais e com numerosos produtos mentais que não chegaram a ser até agora objeto da psicologia por tê-los considerado meramente como resultados de uma perturbação orgânica ou de uma diminuição da capacidade funcional do aparato psíquico. Refiro-me aos atos falhos (equívocos orais ou na escrita, esquecimentos, etc.), aos atos casuais e aos sonhos dos normais e aos ataques convulsivos, delírios, visões, idéias e atos obsessivos dos neuróticos. Estes fenômenos enquanto não passaram, como os atos falhos, totalmente inadvertidos têm sido atribuídos à patologia, que se esforça para encontrar para eles explicações fisiológicas que jamais resultaram satisfatórias. A psicanálise demonstrou, em troca, que todos estes fenômenos podem ser explicados e integrados no conjunto conhecido do suceder psíquico por meio da hipótese de natureza puramente psicológica. Nossa disciplina restringiu assim o raio de ação da fisiologia,
Conquistando, em troca, para a psicologia uma parte considerável da patologia. A máxima força probatória corresponde aqui aos fenômenos normais, sem que se possa acusar a psicanálise de transferir ao normal conhecimento extraído do material patológico, pois aportam suas provas independentemente umas das outras em cada um de tais setores e mostra assim que os processos normais e os chamados patológicos seguem as mesmas regras.
Dos fenômenos normais a que estamos nos referindo, isto é, dos observáveis nas pessoas normais, dedicaremos atenção preferencial a dois: os atos falhos e os sonhos.
Os atos falhos, ou seja, o esquecimento ocasional de palavras e nomes, o de propósitos, os equívocos orais na leitura e na escrita, o extravio de objetos, a perda definitiva dos mesmos, determinados erros contrários o nosso melhor conhecimento, alguns gestos e movimentos habituais; tudo isto que reunimos sob o nome comum de atos falhos do ser humano são e normal tem sido, em geral, muito pouco atendido pela psicologia, atribuindo-se à “distração” e considerando-se derivado da fadiga, da falta de atenção ou de um afeto acessório de certos estados patológicos leves. A investigação analítica demonstrou com suficiente certeza que tais fatores mencionados constituem circunstâncias favoráveis à produção dos fenômenos de referência, mas nunca condições indispensáveis da mesma. Os atos falhos são verdadeiros fenômenos psíquicos e trazem consigo sempre um sentido e uma tendência, constituindo a expressão de determinadas intenções, que em conseqüência da situação psicológica dada não encontram outro meio de exteriorizar-se. Tal situação é, em geral, a correspondente a um conflito psíquico e nela fica privada de expressão direta e derivada por caminhos indiretos a tendência vencida. O indivíduo que comete o ato falho pode dar-se conta dele e pode conhecer separadamente a tendência reprimida que em seu fundo existe, mas ignora, em troca, quase sempre e até que a análise o revele, a relação causal que existe entre a tendência e o ato. As análises dos atos falhos são, muitas vezes, fáceis e rápidas. Uma vez advertido o falho pelo sujeito, sua primeira ocorrência costuma trazer consigo a explicação buscada.
Os atos falhos constituem o material mais cômodo para confirmar as hipóteses psicanalíticas. Em um trabalho que data de 1904 reuni numerosos exemplos desta ordem, com sua interpretação correspondente, coleção que foi logo aumentada pelos aportes de outros observadores.
O motivo que mais freqüentemente nos move a reprimir uma intenção obrigando-a assim a contentar-se com achar expressão indireta em um ato falho é a hesitação de desprazer. Deste modo, esquecemos fortemente um nome próprio quando abrigamos em direção à pessoa a quem corresponde um secreto mal-estar ou deixamos de realizar propósitos que somente a contragosto teríamos levado a cabo, forçados, por exemplo, pelas conveniências sociais. Perdemos um objeto quando nos tornamos inimigos da pessoa a quem nos recorda ou de quem o ganhamos. Tomamos um trem errado quando empreendemos a viagem a contragosto e gostaríamos de permanecer onde estávamos as nos deslocar para um lugar distinto. Onde mais claramente se apresenta a hesitação de desprazer como causa destas falhas funcionais é no esquecimento de impressões e experiências,
Circunstância observada já por autores pré-analíticos. A memória é muito parcial e apresenta uma grande disposição para excluir da reprodução aquelas impressões às quais se une um afeto penoso, ainda que nem sempre o consiga.
Em outros casos, a análise de um ato falho resulta menos sensível e conduz a soluções menos transparentes devido à intervenção de um processo, ao qual damos o nome de deslocamento. Assim, quando esquecemos o nome de uma pessoa contra a qual nada temos, a análise nos faz ver que tal nome despertou associativamente a recordação de outra pessoa de nome igual ou semelhante que nos inspira desgosto. O esquecimento do nome da pessoa inocente foi conseqüência de tal relação, resultando assim que a intenção de esquecer sofreu uma espécie de deslocamento no percurso de um determinado caminho associativo.
A intenção de evitar desprazer não é a única causa dos atos falhos. A análise descobre em muitos casos outras tendências que, havendo sido reprimidas na situação correspondente, tiveram de se manifestar como perturbações de uma função. Assim, os equívocos orais denunciam muitas vezes pensamentos que o sujeito gostaria de manter ocultos a seu interlocutor. Vários grandes poetas compreenderam este sentido de tais equívocos e os empregaram em suas obras. A perda de objetos valiosos resulta ser muitas vezes um sacrifício, encaminhado a afastar uma desgraça temida, não sendo esta a única superstição que ainda se impõe às pessoas cultas sob a forma de um ato falho. O extravio temporal de objetos não é senão a realização inconsciente do desejo de vê-los desaparecer, e sua destruição, a de substituí-los por outros melhores.
A explicação psicanalítica dos atos falhos traz consigo, não obstante a insignificância desses fenômenos, certa modificação de nossa concepção do mundo. Além disso, achamos que a pessoa normal aparece movida por tendências contraditórias com muito mais freqüência do que suspeitávamos. O número de acontecimentos aos que damos o nome de “casuais” fica consideravelmente limitado. De certo modo, é consolador pensar que a perda de objetos não constitui quase nunca uma casualidade, e que nossa distração não é muitas vezes senão um disfarce de intenções ocultas. Muito mais importante é o descobrimento analítico de uma participação inconfessada da própria vontade do sujeito em numerosos acidentes graves, que de outro modo teriam sido atribuídos à casualidade. Este achado da psicanálise vem a tornar mais difícil a diferenciação entre a morte por acidente casual e o suicídio, já tão difícil na prática.
A explicação dos atos falhos apresenta um inegável valor teórico pela simplicidade da solução e a freqüência de tais fenômenos na pessoa normal. Mas como resultado da psicanálise, não é comparável em importância ao obtido na sua aplicação a outro fenômeno distinto da vida psíquica das pessoas saudáveis. Refiro-me à interpretação dos sonhos, com a qual começa a psicanálise a situar-se diante da ciência oficial. A investigação médica considera os sonhos como um fenômeno puramente somático, desprovido de todo sentido e significação, não vendo nele senão a reação do órgão psíquico, adormecido, a estímulos somáticos, que o forçam a despertar parcialmente. A psicanálise, superando a singularidade, a incoerência e o absurdo do fenômeno onírico, eleva-o à categoria de um ato psíquico que possui sentido e intenção próprios e ocupa um lugar na vida psíquica do indivíduo. Para ela, os estímulos somáticos não são senão um dos materiais que a formação dos sonhos elabora. Entre estas duas concepções dos sonhos não há acordo possível.
Contra a concepção fisiológica, testemunha a sua infertilidade. A favor da psicanálise pode se acrescentar o fato de ter traduzido com pleno sentido e aplicado ao descobrimento da mais íntima vida psíquica do ser humano milhares de sonhos.
Em um trabalho publicado em 1900 (A interpretação dos sonhos), tratei o importantíssimo tema da interpretação dos sonhos, tendo logo a satisfação de comprovar que quase todos os meus colaboradores na investigação psicanalítica confirmaram e impulsionaram, com seus próprios aportes, as teorias que iniciei neste trabalho. Hoje já se reconhece unanimemente que a interpretação dos sonhos é a pedra angular do trabalho psicanalítico e que seus resultados constituem a mais importante contribuição da psicanálise à psicologia.
Não me é possível expor aqui a técnica por meio da qual se chega à interpretação dos sonhos, nem tampouco fundamentar os resultados aos qual a elaboração psicanalítica dos mesmos conduziu. Portanto, me limitarei a assinalar alguns novos conceitos, comunicar os resultados analíticos e acentuar sua importância para a psicologia normal.
Assim, pois, a psicanálise nos ensina o seguinte: Todo sonho possui um sentido; sua singularidade procede das deformações que sofreu sua expressão; seu absurdo é intencionado e expressa o engano, o insulto e a contradição; sua incoerência é diferente para a interpretação. O que do sonho recordamos ao despertar não é senão seu conteúdo manifesto. Aplicando a este conteúdo manifesto a técnica interpretadora, chegamos às idéias latentes que se escondem por trás dele, confiando a ele sua representação. Estas idéias latentes já não são singulares, incoerentes nem absurdas, senão elementos plenamente significativos de nosso pensamento desperto. O processo que transformou as idéias latentes do sonho no conteúdo manifesto dele é designado por nós com o nome de elaboração do sonho, e é o que leva a cabo a deformação, em conseqüência da qual já não reconhecemos no conteúdo do sonho as suas idéias.
A elaboração onírica é um processo de uma ordem desconhecida antes em psicologia e apresenta um interesse duplo. Em primeiro lugar nos revela processos novos, tais como a condensação (de representações) e o deslocamento (do acento psíquico de uma representação a outra), que não encontramos no pensamento desperto ou apenas como base dos chamados erros mentais. Mas, além disso, permite-nos decifrar na vida psíquica um dinamismo cuja ação permanecia oculta a nossa percepção consciente. Salientamos que existe em nós uma censura, uma instância examinadora que decide se uma representação emergente deve ou não chegar à consciência, e exclui rigorosamente, dentro de seu raio de ação, tudo o que pode produzir desprazer ou despertá-lo de novo.
Recordaremos que tanto esta tendência a evitar o desprazer provocado pela recordação como dos conflitos surgidos entre as tendências da vida psíquica encontramos já indícios na análise dos atos falhos.
O estudo da elaboração dos sonhos nos impõe uma concepção da vida psíquica que parece resolver as questões mais discutidas da psicologia. A elaboração onírica nos obriga a supor a existência de uma atividade psíquica inconsciente mais ampla e importante que a ligada à consciência, e já conhecida e explorada. (Sobre este ponto retornaremos ao nos ocuparmos do interesse filosófico da psicanálise). Assim mesmo, permite-nos levar a cabo uma articulação do aparato psíquico em várias instâncias ou sistemas, e demonstra que no sistema da atividade psíquica inconsciente se desenvolvem processos de natureza muito distinta da dos que são percebidos na consciência.
A função da elaboração onírica não é senão a de manter o estado de repouso. “O sonho (fenômeno onírico) é o guardião do estado de repouso”. Por sua parte, as idéias do sonho podem achar-se ao serviço das mais diversas funções psíquicas. A elaboração onírica cumpre sua tarefa, representando realizado, em forma alucinatória, um desejo emergente das idéias do sonho.
Pode dizer-se sem temores que o estudo psicanalítico dos sonhos procurou a primeira visão de uma psicologia abismal ou psicologia do inconsciente não cogitada até agora. A psicologia normal terá, pois, de sofrer modificações fundamentais para harmonizar-se com estes novos conhecimentos.
Não nos é possível levar a cabo, dentro dos limites deste trabalho, uma exposição completa do interesse psicológico da interpretação dos sonhos. Deixando bem afirmado que os sonhos são um fenômeno dos descobrimentos trazido à psicologia pela psicanálise no terreno patológico.
Se as novidades psicológicas deduzidas do estudo dos sonhos e dos atos falhos possuem existência e valores reais, terão de nos ajudar a explicar outros fenômenos. Assim sucede, em efeito, e a psicanálise demonstrou que as hipóteses da atividade psíquica inconsciente, a censura e a repressão, a deformação e a produção de substitutivos, deduzidas da análise daqueles fenômenos normais, nos facilitam pela primeira vez a compreensão de toda uma série de fenômenos patológicos, proporcionando-nos, por assim dizer, a chave de todos os enigmas da psicologia das neuroses. Os sonhos se constituem deste modo no protótipo normal de todos os produtos psicopatológicos e sua compreensão nos revela os mecanismos psíquicos das neuroses e psicoses.
Partindo de suas investigações sobre os sonhos a psicanálise pode edificar uma psicologia das neuroses, que um trabalho continuado vai tornando cada vez mais completo. Para a demonstração, que tentamos fazer aqui, do interesse psicológico de nossa disciplina, só necessitamos tratar com certa amplitude dois pontos daquele amplo conjunto: a demonstração de que muitos fenômenos da patologia que se acreditavam dever explicar fisiologicamente são atos psíquicos, e a de que os processos que produzem os resultados anormais podem ser atribuídos a forças motoras psíquicas.
Tornaremos clara a primeira destas afirmações com alguns exemplos. Os ataques histéricos foram reconhecidos, há muito tempo, como signos de uma elevada excitação emotiva e comparados às explosões de afeto. Charcot tentou incluir a diversidade de suas formas em fórmulas descritivas. J. Janet descobriu a representação inconsciente que atua por trás destes ataques. A psicanálise viu nestas representações mímicas de cenas vividas ou fantasiadas que ocupam a imaginação do enfermo sem que ele tenha consciência delas. O sentido de tais pantomimas fica velado aos olhos do espectador por meio de condensações e deformações dos atos representados. Este ponto de vista resulta aplicável a todos os demais sintomas típicos dos enfermos histéricos.
Todos eles são, em efeito, representações mímicas ou alucinatórias, de fantasias que dominam inconscientemente sua vida emotiva, e significam uma satisfação de secretos desejos reprimidos. O caráter atormentador destes sintomas procede do conflito interior provocado na vida anímica de tais enfermos pela necessidade de combater tais impulsos optativos inconscientes.
Em outra afecção neurótica a neurose obsessiva os pacientes ficam sujeitos à penosa execução de um cerimonial sem sentido aparente, constituído pela repetição de atos totalmente indiferentes, tais como os de lavar-se ou vestir-se, a obediência a preceitos insensatos ou a observação de misteriosas inibições. Para o trabalho psicanalítico constituiu um triunfo chegar a demonstrar que todos estes atos obsessivos, até os mais insignificantes, possuem pleno sentido e refletem por meio de um material indiferente os conflitos da vida, a luta entre as tentações e as coerções morais, o mesmo desejo rechaçado e os castigos e penitências com os que se quer compensar. Em outra distinta forma da mesma enfermidade o sujeito sofre idéias penosas, representações obsessivas cujo conteúdo se impõe imperiosamente, acompanhadas de afetos cuja natureza e intensidade não correspondem quase nunca ao conteúdo das idéias obsessivas. A investigação analítica demonstrou aqui que tais afetos se acham perfeitamente justificada, correspondendo a reprovações baseadas, pelo menos, em uma realidade psíquica. Mas as idéias atribuídas a tais afetos não são já as primitivas, senão outras distintas, ligadas a eles por um deslocamento (substituição) de algo reprimido. A redução destes deslocamentos abre o caminho até o conhecimento das idéias reprimidas e nos demonstra que a ligação do afeto e representação é perfeitamente adequada.
Em outra afecção nervosa, a incurável demência precoce (parafrenia, esquizofrenia) na qual os enfermos mostram uma absoluta indiferença, achamos freqüentemente como únicos atos certos movimentos e gestos, uniformemente repetidos, aos que se deu o nome de “estereotipias”. A investigação analítica de tais atos (levada a cabo por C. G. Jung) permitiu reconhecer neles resíduos de atos mímicos plenos de sentido, por meio dos quais os impulsos optativos que dominavam o sujeito criavam antes uma expressão. A aplicação das hipóteses analíticas aos discursos mais absurdos e às atitudes e gestos mais singulares destes enfermos permitiu sua compreensão e sua integração na vida psíquica conjunta do sujeito.
Analogamente, sucede com os delírios, alucinações e sistemas delirantes de outros diversos enfermos mentais. Ali onde parecia reinar a mais singular arbitrariedade o trabalho psicanalítico descobriu uma norma, uma ordem e uma coerência. As mais diversas formas patológicas psíquicas foram reconhecidas como resultados de processos idênticos, no fundo, suscetíveis de ser apreendidos e descritos por meio de conceitos psicológicos. Em todas as partes achamos a atuação do conflito psíquico descoberto na elaboração dos sonhos: a repressão de determinados impulsos instintivos, rechaçados ao inconsciente por outras forças psíquicas; os produtos reativos das forças repressoras e os produtos substitutivos das forças reprimidas, mas não despojadas totalmente de sua energia. Por todas as partes também encontramos nestes processos aqueles outros a condensação e o deslocamento que nos foram dados a conhecer pelo estudo dos sonhos. A diversidade das formas patológicas observadas na clínica de psiquiatria depende de outros dois fatores: da
Multiplicidade dos mecanismos psíquicos de que dispõe o trabalho da repressão e da multiplicidade das disposições histórico-evolutivos que permitem aos impulsos reprimidos chegar a constituir-se em produtos substitutivos.
Uma boa metade do trabalho psiquiátrico é encomendada pela psicanálise à psicologia. Mas constituirá um grave erro supor que a análise aspira a uma concepção puramente psicológica das perturbações psíquicas. Não pode desconhecer que a outra metade do trabalho psiquiátrico tem por conteúdo a influência de fatores orgânicos (mecânicos, tóxicos, infecciosos) sobre o aparato psíquico. Na etiologia dos transtornos psíquicos não admite, nem ainda para os mais leves, como o são as neuroses, uma origem puramente psicógena, senão que busca sua motivação na influência da vida psíquica por um elemento indubitavelmente orgânico, do qual mais tarde trataremos.
Os resultados psicanalíticos, suscetíveis de alcançar uma importante significação para a psicologia geral, são demasiado numerosos para que possamos detalhá-los neste breve trabalho. Unicamente citaremos, sem nos determos em seu exame, dois pontos determinados: o modo inequívoco em que a psicanálise reclama para os processos afetivos a primazia na vida psíquica e sua demonstração de que na pessoa normal se dá, o mesmo que na enferma, uma indiscutível perturbação e ofuscamento afetivo do intelecto.


Capítulo II
O interesse da psicanálise para as ciências não psicológicas

A)      O interesse filológico

Ao postular o interesse filológico da psicanálise vou seguramente mais além da significação usual da palavra “filologia”, ou seja, “ciência da linguagem”, pois sob o conceito de linguagem não me refiro tão só à expressão do pensamento em palavras, senão também à linguagem dos gestos e a todas as demais formas de expressão da atividade psíquica, como, por exemplo, a escrita. Deve-se ter em conta que as interpretações da psicanálise são, em primeiro lugar, traduções de uma forma expressiva estranha a nós a outra familiar a nosso pensamento. Quando interpretamos um sonho não fazemos senão traduzir da “linguagem do sonho” à de nossa vida desperta certo conteúdo mental (as idéias latentes do sonho). Ao efetuar este trabalho aprendemos a conhecer as peculiaridades daquela linguagem onírica, e experimentamos a impressão de que pertence a um sistema de expressão altamente arcaico. Assim, se observa que a negação não encontra jamais nele uma expressão especial direta, e que um mesmo elemento serve de representação a idéias antitéticas. Dito de outro modo: na linguagem dos sonhos os conceitos são, todavia, ambivalentes; reúnem em si significações opostas, condição que, segundo as hipóteses dos filólogos, apresentavam também as mais antigas raízes das línguas históricas. Outro caráter singular de nossa linguagem onírica é o freqüentíssimo emprego de símbolos, circunstância que permite em certa medida uma tradução do conteúdo do sonho, sem o auxílio das associações individuais. A essência destes símbolos não foi ainda totalmente apreendida pela investigação; trata-se de substituições e comparações, baseadas em analogias claramente visíveis em alguns casos, enquanto que em outros escapa por completo à nossa percepção consciente o eventual tertium comparationis. Estes últimos símbolos seriam precisamente os que haveriam de proceder das fases mais primitivas do desenvolvimento da linguagem e da formação dos conceitos. No sonho é predominantemente os órgãos e as funções sexuais o que experimenta uma representação simbólica em vez de direta. O filólogo Hans Sperber, de Upsala, tentou provar em um trabalho recente que aquelas palavras que designavam primitivamente atividades sexuais experimentaram, graças a tais processos comparativos, numerosas mudanças de sentido.
Tendo em conta que os meios de representação do sonho são principalmente imagens visuais e não palavras, devemos compará-lo mais adequadamente a um sistema de escrita que a uma linguagem.
Em realidade, a interpretação de um sonho é um trabalho totalmente análogo ao de decifrar um escrito antigo figurado, como o dos hieróglifos egípcios. Em ambos os casos, achamos elementos não destinados à interpretação, ou respectivamente, à leitura, senão a facilitar, em qualidade de determinativos, a compreensão de outros elementos. A múltipla significação de diversos elementos do sonho encontra também seu reflexo nestes antigos sistemas gráficos, o mesmo que a omissão de certas relações que em um e outro caso serão deduzidas do contexto. Se uma tal concepção da representação do sonho não foi amplamente desenvolvida, foi tão somente porque o psicanalista carece daqueles conhecimentos que o filólogo poderia aplicar a um tema como o dos sonhos.
Pode dizer-se que a linguagem dos sonhos é a forma expressiva da atividade psíquica inconsciente; mas o inconsciente fala mais de um só dialeto. Entre as variadas condições psicológicas que caracterizam e diferenciam entre si as distintas formas de neurose, achamos também constantes mudanças da expressão dos impulsos psíquicos inconscientes. Enquanto a linguagem psíquica da histeria coincide por completo com a linguagem figurada dos sonhos, as visões, etc., tropeçamos, em troca, com produtos idiomáticos especiais para a linguagem ideológica da neurose e das parafrenias (demência precoce e paranóia), produtos que em toda uma série de casos podemos já compreender e relacionar entre si. Aquilo que uma histérica representa por meio da acusação ou da suspeita de que se trata de envenená-la. O que assim encontra tão diversa expressão não é senão o desejo reprimido e rechaçado ao inconsciente de engendrar em seu seio um filho, ou, correlativamente, a defesa da paciente contra tal desejo.

B) Interesse filosófico

Enquanto a filosofia tem como base a psicologia, terá de atender amplamente às contribuições psicanalíticas a tal ciência e reagir a este novo incremento de nossos conhecimentos como vem reagindo a todos os progressos importantes das ciências especiais. O descobrimento das atividades psíquicas inconscientes obrigará muito especialmente a filosofia a tomar seu partido, e no caso de se inclinar para o lado da psicanálise, modificará suas hipóteses sobre a relação entre o psíquico e o físico, até que correspondam aos novos descobrimentos. Os filósofos se ocuparam, desde cedo, repetidamente do problema do inconsciente, mas adotando, em geral salvo poucas exceções, uma das duas posições seguintes: ou consideraram o inconsciente como algo místico, inapreensível e indemonstrável, cuja relação com o psíquico permanecia na obscuridade, ou identificaram o psíquico com o consciente, deduzindo logo desta definição que algo que era inconsciente não podia ser psíquico nem, portanto, objeto da psicologia. Estas atitudes resultam do fato de os filósofos terem julgado o inconsciente antes de conhecer os fenômenos na atividade psíquica inconsciente e, em conseqüência, sem suspeitar de sua extraordinária afinidade com os fenômenos conscientes, nem dos caracteres que deles os diferenciam. Se, depois de adquirir tal conhecimento dos fenômenos inconscientes alguém mantém ainda a identificação do consciente com o psíquico, e nega, portanto, ao inconsciente todo caráter psíquico, não objetaremos senão que a diferenciação não tem nada de prática, toda vez que, partindo de sua íntima relação com o consciente, fica fácil descrever o inconsciente e seguir seus desenvolvimentos, coisa impossível de conseguir, pelo menos até agora, partindo do processo físico.
 O inconsciente deve, pois, permanecer sendo considerado como objeto da psicologia.
Todavia existe outro aspecto do qual pode a filosofia receber o impulso da psicanálise, que é passando a ser objeto da mesma. Os sistemas e teorias filosóficas são obra de um limitado número de pessoas de individualidade superior, e a filosofia é a disciplina em que a personalidade do cientista representa o maior papel. Porém: a psicanálise nos permite dar uma descrição psicológica da personalidade (daí o seu interesse sociológico). Ensina-nos a conhecer as unidades afetivas os complexos dependentes dos instintos que temos de pressupor em todo indivíduo, e nos inicia no estudo das transformações e nos resultados finais gerados por estas forças instintivas. Descobre as relações existentes entre as disposições constitucionais da pessoa, seus destinos e os produtos que pode alcançar graças a dotes especiais. Diante da obra artística lhe é possível decifrar, com mais ou menos segurança, a personalidade que se esconde por trás dela, e deste modo pode descobrir a motivação subjetiva e individual das teorias filosóficas, surgidas de um trabalho lógico imparcial, e destacar criticamente os pontos débeis de seu sistema. Esta crítica não é tarefa da psicanálise, pois, naturalmente, a determinação psicológica de uma teoria não exclui sua correção científica.

C) Interesse biológico

A psicanálise não teve, como outras ciências modernas, a sorte de ser acolhida com um esperado interesse por parte daqueles que se ocupam do progresso do conhecimento. Durante muito tempo se negou a ela toda atenção, e quando não foi mais possível ignorá-la, os que se deram ao trabalho de submetê-la a um exame detido fizeram dela objeto de uma violenta hostilidade, dependente de razões afetivas. A causa de uma acolhida tão contrária foi o descobrimento feito por nossa disciplina em seus primeiros objetos de investigação de que as enfermidades nervosas eram a expressão de um transtorno da função sexual, descobrimento que a conduziu a se dedicar a investigar tal função, tanto tempo desatendida. Porém: quem quer que se mantenha fiel ao princípio de que os juízos científicos não devem sofrer a influência das atitudes afetivas, terá de reconhecer órgãos sucessivamente desenvolvidos, os indivíduos que perecem, idéia que nos facilita, por fim, nesta orientação investigadora da psicanálise um alto interesse biológico, vendo nas resistências a ela opostas uma nova prova de suas afirmações.
A psicanálise fez justiça à função sexual humana, investigando minuciosamente sua extraordinária importância para a vida psíquica e prática, importância assinalada já por muitos poetas e alguns filósofos, mas jamais reconhecida pela ciência. Tal investigação exigia como premissa uma ampliação do conceito da sexualidade, indevidamente restrito, justificada por determinadas transgressões sexuais (as chamadas perversões) e pela conduta do bebê.
 Demonstrou-se impossível seguir afirmando a sexualidade da infância até a repentina eclosão dos impulsos sexuais na época da puberdade. Uma observação imparcial e livre de preconceitos provou, pelo contrário, sem dificuldade que o sujeito humano infantil traz em si interesses e atividades sexuais em todos os períodos desta época de sua existência e desde o princípio da mesma.  A importância desta sexualidade infantil não fica diminuída pelo fato de não ser possível traçar com plena segurança seu contorno, diferenciando-a em todos os seus pontos da atividade a sexual do bebê. Deve-se ter em conta que se trata de algo muito distinto da sexualidade chamada “normal” do adulto. Seu conteúdo traz consigo os germes de todas aquelas atividades sexuais que oporemos logo na qualidade de perversões na vida sexual normal, parecendo-nos incompreensíveis e viciosas. Da sexualidade infantil surge a norma do adulto através de uma série de processos evolutivos, associações, dissociações e repressões, que jamais se desenvolvem de um modo idealmente perfeito e deixam atrás de si, em conseqüência de tal imperfeição, disposições a uma repressão da função de estados.
Patológicos.
A sexualidade infantil possui duas qualidades muito interessantes biologicamente. Mostra-se composta por uma série de instintos parciais ligados a determinadas regiões do soma zonas erógenas, algumas das quais surgem desde o princípio, formando pares antitéticos, isto é, como instintos com fim ativo e passivo. Do mesmo modo que nos posteriores estados de apetência sexual não são meramente os órgãos sexuais da pessoa amada, senão todo seu corpo, o que se constitui em objeto sexual, no bebê, é o ponto de origem de excitação sexual e de produção de prazer sexual ante um estímulo adequado, não só dos genitais, senão também de outras partes do soma. Estreitamente ligado a este, achamos o segundo caráter peculiar da sexualidade infantil sua ligação inicial às funções encaminhadas à conservação, tais como a ingestão de alimentos, a excreção, e, provavelmente também, a inervação muscular e a atividade sensorial.
Ao estudar com o auxílio da psicanálise a sexualidade do adulto e observar à luz dos conhecimentos assim adquiridos a vida do bebê, não se mostra a nós a sexualidade como uma função encaminhada tão somente à reprodução e equivalente às funções digestivas, respiratórias, etc., senão como algo muito mais independente, oposto às demais atividades do indivíduo e que somente por uma complicada evolução, muito rica em restrições, é forçada a entrar no contexto da economia individual. O caso, teoricamente muito possível, de que os interesses destas tendências sexuais não coincidam com os da conservação individual, aparece realizado no grupo patológico das neuroses, pois a última fórmula em que a psicanálise concretizou a essência das neuroses afirma que o conflito original do qual surgem as neuroses é o que nasce entre os instintos que mantém o eu e os instintos sexuais. As neuroses correspondem a uma derrota mais ou menos parcial do eu pela sexualidade, depois que o eu fracassou em sua tentativa de dominar a sexualidade.
Durante nosso trabalho psicanalítico, acreditamos ser necessário nos manter distantes dos pontos de vista biológicos e não os utilizarmos tampouco para fins heurísticos, com o fim de evitar erros na apreciação imparcial dos resultados analíticos. Mas uma vez terminado tal trabalho, teremos de buscar sua confirmação biológica, e nos satisfaz ver que a conseguimos em vários pontos essenciais. A antítese entre os instintos do eu e o instinto sexual, à qual atribuímos a gênese da neurose, se prolonga ao terreno biológico, como antítese entre os instintos encaminhados à conservação do indivíduo e outros postos ao serviço da continuação da espécie. Na biologia tropeçamos com a idéia mais ampla do plasma germinativo imortal, do qual dependem, como órgãos sucessivamente desenvolvidos, os indivíduos que perecem, idéia que nos facilita, por fim, a.
Exata compreensão do papel desempenhado pelas forças instintivas sexuais na fisiologia e na
Psicologia do ser individual.
Apesar de nossos esforços por evitar em nosso trabalho psicanalítico termos e pontos de vista biológicos, não podemos deixar de empregá-los na descrição dos fenômenos que estudamos. O conceito de “instinto” nos impõe como conceito limite entre as concepções psicológica e biológica, e falamos de qualidades e tendências psíquicas “masculinas” e “femininas”, ainda que as diferenças de sexo não possam aspirar, em realidade, a uma característica psíquica especial. Aquilo que na vida chamamos masculinos ou femininos se reduz, para a consideração psicológica, aos caracteres de atividade e passividade, isto é, a qualidades que não podem ser atribuídas aos instintos mesmos, senão aos seus fins. Na constante comunidade de tais instintos “ativos” e “passivos” na vida psíquica se reflete a bissexualidade dos indivíduos, que é o postulado clínico da psicanálise. Ficarei satisfeito de ter conseguido chamar a atenção com estas considerações sobre a
Ampla mediação que a psicanálise estabelece entre a biologia e a psicologia.


D) O interesse da psicanálise para a história da evolução

Nem toda a análise de fenômenos psicológicos merece o nome de psicanálise. Esta última significa algo mais que a decomposição de fenômenos compostos em outros mais simples; consiste em uma redução de um produto psíquico a outros que o precederam no tempo e dos quais se desenvolveram.
O método médico psicanalítico não conseguiria suprimir um só sintoma patológico se não investigasse sua gênese e seu desenvolvimento, e deste modo a psicanálise teria de se orientar desde o princípio em direção à investigação de processos evolutivos. Assim, descobriu primeira a gênese dos sintomas neuróticos e em seu progresso posterior teve de ampliar seu raio de ação a outros produtos psíquicos e realizar com eles o trabalho de uma psicologia genética.
A psicanálise se viu obrigada a deduzir a vida psíquica do adulto da do bebê, dando assim razão à afirmação de que o bebê é o pai do homem. Perseguir a continuidade da psique infantil com a do adulto, mas também as transformações e alterações que em tal trajetória têm efeito. A memória da maior parte dos seres humanos apresenta uma lacuna no que se refere aos primeiros anos de sua vida infantil, da qual só conservamos algumas recordações fragmentárias. Pode se afirmar que a psicanálise preencheu tal lacuna, suprimindo esta amnésia infantil dos adultos (cf. O interesse pedagógico).
Ao aprofundar-se na vida psíquica infantil realizamos alguns descobrimentos singulares. Assim, podemos confirmar algo que já suspeitávamos, a extraordinária importância que para toda a orientação posterior do ser humano têm as impressões de sua infância, e muito especialmente as recebidas em seus primeiros anos. Tropeçamos aqui com um paradoxo psicológico que só se desfaz para a concepção psicanalítica, pois resulta que tais impressões, de máxima importância, não aparecem contidas na memória nos anos posteriores. Mas precisamente no que respeita à vida sexual foi onde a psicanálise conseguiu fixar com mais precisa claridade a exemplaridade e o caráter indelével dos mais precoces acontecimentos da vida humana. A expressão on revient toujours à ses premiers amours5 é uma tímida verdade. Os múltiplos enigmas da vida erótica do adulto não se resolvem senão tendo em conta os fatores infantis do amor. Para a teoria destes efeitos deve-se ter em conta que as primeiras experiências infantis do indivíduo não são fruto único do acaso, senão que correspondem também às primeiras atividades das disposições instintivas constitucionais com que veio ao mundo. Outro de nossos descobrimentos mais surpreendentes foi o de que, apesar da posterior evolução,
Nenhum dos produtos psíquicos infantis sucumbe no adulto. Todos os desejos, impulsos instintivos, modos de reação e disposições do bebê subsistem no adulto, e podem voltar a aparecer sob um conjunto de fenômenos adequados. Não ficaram destruídos, senão simplesmente sepultados pela superposição de outros estratos psíquicos. Constitui assim um caráter particular do passado psíquico o ser devorado por suas próprias seqüelas, como o passado histórico. Pelo contrário, subsiste ao lado daquilo que dele surgiu em uma simultaneidade, seja meramente virtual, seja completamente real. A prova desta afirmação é que os sonhos do adulto normal reavivam todas as noites seu caráter infantil e retrocedem toda sua vida psíquica e um grau infantil. Esta mesma regressão ao infantilismo psíquico tem efeito também na neurose e na psicose, cujas singularidades são descritas, em grande parte, como arcaísmos psíquicos. A energia que os restos infantis conservaram na vida psíquica nos dá a medida da disposição à enfermidade, passando esta a constituir assim, para nós, a expressão de uma inibição do desenvolvimento. Aquilo que no material psíquico do adulto permaneceu infantil e se acha reprimido como inútil, constitui o nódulo de seu inconsciente, e acreditamos poder seguir na história da vida de nossos pacientes como este inconsciente, retido pelas forças repressoras, espia o momento de entrar em atividade e aproveita as ocasiões que para isso se apresentam a ele quando as formações psíquicas posteriores e mais elevadas não conseguem dominar as dificuldades do mundo real. Nos últimos anos a psicanálise se apercebeu de que o princípio “a ontogenia é uma repetição da
Filogenia” podia ser também aplicável à vida psíquica, e desta reflexão surgiu uma nova ampliação do interesse de nossa disciplina.

E) O interesse da psicanálise para a história da civilização

A comparação da infância do indivíduo com a história primitiva dos povos se demonstrou muito frutífera sob distintos aspectos, não obstante tratar-se de um trabalho científico apenas começado. A concepção psicanalítica vem a constituir aqui um novo instrumento de trabalho. A aplicação de suas hipóteses à psicologia dos povos permite colocar novos problemas e contemplar a uma nova luz os já investigados, cooperando com sua solução.
Em primeiro lugar, parece muito possível aplicar a concepção psicanalítica obtida no estudo dos sonhos aos produtos da fantasia dos povos, tais como os mitos e as fábulas. Faz tempo que se trabalha na interpretação de tais produtos, suspeitando-se que trazem consigo um “sentido oculto”, encoberto por diversas transformações e modificações. A psicanálise agrega a este trabalho a experiência extraída de sua investigação dos sonhos e das neuroses, mediante a qual é possível descobrir os caminhos técnicos de tais deformações. Mas, além disso, pode revelar em toda uma série de casos os motivos ocultos que desviaram o mito de seu sentido original. Não vê o primeiro impulso à formação de mitos em uma necessidade teórica de explicação dos fenômenos naturais ou de justificação de preceitos culturais ou usos que se tornaram incompreensíveis, senão que os busca naqueles mesmos “complexos” psíquicos e naquelas mesmas tendências afetivas, cuja existência teve de comprovar como base dos sonhos e da formação de sintomas.
Esta mesma transferência de seus pontos de vista, hipótese e conhecimentos capacita a psicanálise para lançar luz sobre as origens de nossas grandes instituições culturais, tais como a religião, a moral, o direito e a filosofia. Investigando aquelas primitivas situações psicológicas, em que pode ter surgido o impulso a tais criações, se faz possível rechaçar alguma tentativa de explicação baseada em uma provisionalidade psicológica e substituí-la por uma visão mais profunda.
A psicanálise estabelece uma íntima relação entre todos estes produtos do indivíduo e das coletividades, ao postular para ambos a mesma fonte dinâmica. Parte da idéia fundamental de que a função capital do mecanismo psíquico é descarregar o ser das tensões geradas nele pelas necessidades. Uma parte deste trabalho se soluciona por meio da satisfação extraída do mundo exterior, e para este fim se faz necessário o domínio do mundo real. Mas outra parte de tais necessidades, e entre elas essencialmente certas tendências afetivas, se vê sempre negada pela realidade toda satisfação. Esta circunstância dá origem à segunda parte do trabalho antes indicado, que consiste em estas tendências insatisfeitas procurar uma descarga distinta. Toda história da civilização é uma exposição dos caminhos que empreendem os seres humanos para dominar seus desejos insatisfeitos, segundo as exigências da realidade e as modificações nela introduzidas pelos progressos técnicos.
A investigação dos povos primitivos nos mostra os seres humanos entregues, num princípio, a uma fé infantil na onipotência e nos proporciona a explicação de toda uma série de produtos psíquicos, revelando-os como esforços encaminhados a negar os fracassos de tal onipotência e a manter assim a realidade longe de toda influência sobre a vida afetiva, e não é possível dominá-la melhor e utilizá-la para satisfação. O princípio da evitação de desprazer rege a atividade humana até que seja substituído pelo da adaptação ao mundo exterior, muito mais conveniente ao indivíduo. Paralelamente ao domínio progressivo do ser humano sobre o mundo exterior, se desenvolve uma evolução de sua concepção do universo, que vai se afastando cada vez mais da fé primitiva na onipotência e se eleva, desde a fase animista até a científica, através da religiosa. Neste conjunto entram o mito, a religião e a moralidade, como tentativas de obter uma compreensão da fracassada satisfação de desejos.
O conhecimento dos distúrbios neuróticos do indivíduo facilitaram muito a compreensão das grandes instituições sociais, pois as neuroses mesmas se revelam a nós como tentativas de resolver individualmente aqueles problemas da compensação dos desejos, que teriam de ser resolvidos.
Socialmente pelas instituições. A desaparição do fator social e o predomínio do fator sexual convertem estas soluções neuróticas em caricaturas não utilizáveis para algo diferente de nosso esclarecimento destes importantes problemas.

F) O interesse da psicanálise para a estética

A psicanálise conseguiu resolver também satisfatoriamente alguns dos problemas ligados à arte e ao artista. Outros escapam por completo à sua influência. Reconhece também no exercício da arte uma atividade encaminhada à mitigação de desejos insatisfeitos, e isso, tanto no mesmo artista criador como no espectador da obra de arte. As forças propulsoras da arte são aqueles mesmos conflitos que conduzem a outros indivíduos à neurose e moveram a sociedade à criação de suas instituições. O problema da origem da capacidade artística criadora não é assunto da psicologia. O artista busca, em primeiro lugar, sua própria liberação, e o consegue comunicando sua obra àqueles que sofrem a insatisfação de desejos iguais. Apresenta realizadas suas fantasias; mas se estas chegaram a se.
Constituir em uma obra de arte, é mediante uma transformação que mitiga o repulsivo de tais desejos, encobre a origem pessoal dos mesmos e oferece aos demais atrativos de primorosos de prazer, atendo-se a normas estéticas. Para a psicanálise resulta fácil descobrir, ao lado da parte manifesta do gozo artístico, outra parte latente, muito mais ativa, procedente das fontes ocultas da liberação dos instintos. A relação entre as impressões infantis e os destinos do artista e suas obras, como reações a tais impulsos, constitui um dos objetos mais atrativos da investigação analítica.
Além disso, a maioria dos problemas da criação e do gozo artístico esperam ainda ser objeto de um trabalho que lance sobre eles a luz dos descobrimentos analíticos e os assinale seu posto no complicado edifício das compensações dos desejos humanos. A título de realidade convencionalmente reconhecida, na qual, e graças à ilusão artística, podem os símbolos e os produtos substitutivos provocar afetos reais, forma a arte um domínio intermediário entre a realidade, que nos nega a realização de nossos desejos, e o mundo da fantasia, que nos proporciona sua satisfação, um domínio no qual conservam toda sua energia as aspirações à onipotência da Humanidade primitiva.


G) O interesse sociológico

A psicanálise fez desde cedo objeto de sua investigação a psique individual; mas neste trabalho não podiam escapar-lhe os fundamentos afetivos da relação do indivíduo com a sociedade. Desse modo descobriu que os sentimentos sociais recebem uma contribuição do caráter erótico, cuja superacentuação e posterior repressão vêm a constituir-se em características de um determinado grupo de perturbações psíquicas. Assim mesmo, reconheceu, em geral, o caráter não social da neurose, que tendem todas as expulsar o indivíduo da sociedade, substituindo o asilo que antes lhe brindava o claustro pelo isolamento que a enfermidade traz consigo. O intenso sentimento de culpabilidade, dominante em tantas neuroses, resulta a seus olhos uma modificação social da angústia erótica.
Por outra parte, a psicanálise descobriu quão amplamente participam as circunstâncias e exigências.
Sociais na etiologia da neurose. As forças que produzem a limitação e a repressão dos instintos.
Aquela mesma constituição e aquelas mesmas experiências infantis, que conduziriam o indivíduo à neurose, não obterão tal efeito quando não existe tal docilidade ou não sejam colocadas tais exigências no círculo social em que o indivíduo vive. A velha afirmação de que o nervosismo era um produto da civilização tem, pelo menos, uma parte de verdade. A educação e o exemplo situam o indivíduo jovem diante das exigências culturais. Naqueles casos em que a repressão dos instintos chega a efeito nele, com independência dos dois fatores citados, vamos supor que a exigência primitiva chegou a se converter, no fim, em uma propriedade hereditária organizada do ser humano. O bebê, que produz espontaneamente repressões de instintos, não faria com isso senão repetir uma parte da história da civilização. O que hoje constitui uma restrição interna foi em um tempo somente externa imposta talvez pelas circunstâncias da época, resultando assim que também o que hoje se coloca diante de cada indivíduo como exigência cultural externa poderá converter-se um dia em disposição interna à repressão.

H) Interesse pedagógico

O máximo interesse da psicanálise para a pedagogia se apóia em um princípio, demonstrado até a evidência. Só pode ser pedagogo quem se encontre capacitado para infundir-se na alma infantil, e nós, os adultos, não compreendemos nossa própria infância. Nossa amnésia infantil é uma prova de quão estranhos a isso chegamos a ser. A psicanálise descobriu os desejos, produtos mentais e processos evolutivos da infância. Todos os esforços anteriores foram por demais incompletos e errôneos, como conseqüência de haver deixado de lado por completo o inestimável fator da sexualidade em suas manifestações somáticas e psíquicas. O cético assombro com que são acolhidos os descobrimentos mais evidentes da psicanálise nesta questão da infância os referentes ao complexo de Édipo, o narcisismo, as disposições perversas, o erotismo anal e a curiosidade sexual dão idéia da distância que separa nossa vida psíquica, nossas valorações e inclusive nossos processos mentais dos do bebê normal.
Quando os educadores se familiarizarem com os resultados da psicanálise, será mais fácil reconciliar-se com determinadas fazes da evolução infantil, e entre outras coisas, não correrão o perigo de exagerar a importância dos impulsos instintivos perversos ou não sociais que o bebê venha a mostrar. Pelo contrário, se guardarão de toda tentativa de subjugar violentamente tais impulsos ao saber que tal procedimento de influxo pode produzir resultados tão indesejáveis como a passividade diante da perversão infantil, tão temida pelos pedagogos. A repressão violenta de instintos enérgicos, levada a cabo a partir do exterior, não produz nunca nos bebês a desaparição nem a superação de tais instintos, e sim tão somente uma repressão, que inicia uma tendência a posteriores distúrbios neuróticos. A psicanálise tem freqüente ocasião de comprovar a grande participação que uma educação inadequadamente severa tem na produção de distúrbios nervosos ou com que perdas da capacidade de produção e de gozo são conquistadas a normalidade exigida. Mas também pode ensinar quão valiosas contribuições proporcionam estes instintos perversos e não sociais do bebê à formação do caráter quando não sucumbem à repressão, senão que são desviados por meio do processo chamado sublimação, de seus fins primitivos e dirigidos a outros mais valiosos. Nossas melhores virtudes nasceram, em qualidade de reações e sublimações, sobre o terreno das piores disposições.
A educação deveria guardar-se cuidadosamente de cegar estas preciosas fontes de energia e limitar-se a impulsionar aqueles processos por meio dos quais são dirigidas tais energias por bons caminhos. Uma educação baseada nos conhecimentos psicanalíticos pode constituir a melhor profilaxia individual das neuroses.
Não podia colocar-me neste trabalho a tarefa de expor a um público científico o alcance e o conteúdo da psicanálise, com todas as hipóteses, problemas e resultados da mesma. Será suficiente ter indicado claramente para quantos setores científicos resultam interessantes suas investigações e quão numerosas relações começam a estabelecer com os mesmo.

(1913). In: Freud, Sigmund. Obras completas. Madrid:
Editorial Biblioteca Nueva, 1996, pp. 1851-1867.

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