Capítulo I
A psicanálise é um procedimento médico que aspira à
cura de certas formas do nervosismo (neurose). Em um trabalho publicado em 1910
já descrevi a evolução da psicanálise desde seu ponto de partida no método
catártico, de J. Breuer, e suas relações com as teorias de Charcot e P. Janet.
Como exemplos das formas patológicas acessíveis à
psicanálise podem ser citados as convulsões e inibições da histeria e os
diversos sintomas da neurose obsessiva (atos e idéias obsessivas). Trata-se de
estados que desaparecem às vezes espontaneamente e respondem de um modo
caprichoso, até agora inexplicado, à influência pessoal do médico. Nas formas
graves das perturbações mentais propriamente ditas a psicanálise não alcança
resultado positivo algum. Mas tanto nas psicoses1 como nas neuroses nos
facilita pela primeira vez na história da medicina uma visão das origens e o
mecanismo desses distúrbios.
Esta importância médica da psicanálise não
justificaria a tentativa de apresentá-la em um círculo de estudiosos
interessados pela síntese das ciências, e muito menos quando tal tarefa
pareceria prematura enquanto uma grande parte dos psiquiatras e neurólogos
continuem mostrando-se oposta ao novo método do terapêutico e rechace tanto
suas hipóteses como seus resultados. Se, não obstante, considero legítima esta
tentativa é porque a psicanálise aspira a interessar a praticante da ciência
distintos dos psiquiatras, pois se estende a outros vários setores científicos
diferentes e estabelece entre estes e a patologia da vida psíquica relações
evidentes.
Deixarei, pois, de lado, por agora, o interesse médico
da psicanálise e tratarei de demonstrar, com uma série de exemplos, minhas
afirmações anteriores sobre nossa jovem ciência.
Tanto na pessoa normal como naquelas que apresentam
distúrbios tropeçamos com uma série de expressões mímicas e verbais e com
numerosos produtos mentais que não chegaram a ser até agora objeto da
psicologia por tê-los considerado meramente como resultados de uma perturbação
orgânica ou de uma diminuição da capacidade funcional do aparato psíquico.
Refiro-me aos atos falhos (equívocos orais ou na escrita, esquecimentos, etc.),
aos atos casuais e aos sonhos dos normais e aos ataques convulsivos, delírios,
visões, idéias e atos obsessivos dos neuróticos. Estes fenômenos enquanto não
passaram, como os atos falhos, totalmente inadvertidos têm sido atribuídos à
patologia, que se esforça para encontrar para eles explicações fisiológicas que
jamais resultaram satisfatórias. A psicanálise demonstrou, em troca, que todos
estes fenômenos podem ser explicados e integrados no conjunto conhecido do
suceder psíquico por meio da hipótese de natureza puramente psicológica. Nossa
disciplina restringiu assim o raio de ação da fisiologia,
Conquistando, em troca, para a psicologia uma parte
considerável da patologia. A máxima força probatória corresponde aqui aos
fenômenos normais, sem que se possa acusar a psicanálise de transferir ao normal
conhecimento extraído do material patológico, pois aportam suas provas
independentemente umas das outras em cada um de tais setores e mostra assim que
os processos normais e os chamados patológicos seguem as mesmas regras.
Dos fenômenos normais a que estamos nos referindo,
isto é, dos observáveis nas pessoas normais, dedicaremos atenção preferencial a
dois: os atos falhos e os sonhos.
Os atos falhos, ou seja, o esquecimento ocasional de
palavras e nomes, o de propósitos, os equívocos orais na leitura e na escrita,
o extravio de objetos, a perda definitiva dos mesmos, determinados erros
contrários o nosso melhor conhecimento, alguns gestos e movimentos habituais;
tudo isto que reunimos sob o nome comum de atos falhos do ser humano são e
normal tem sido, em geral, muito pouco atendido pela psicologia, atribuindo-se
à “distração” e considerando-se derivado da fadiga, da falta de atenção ou de
um afeto acessório de certos estados patológicos leves. A investigação
analítica demonstrou com suficiente certeza que tais fatores mencionados
constituem circunstâncias favoráveis à produção dos fenômenos de referência,
mas nunca condições indispensáveis da mesma. Os atos falhos são verdadeiros
fenômenos psíquicos e trazem consigo sempre um sentido e uma tendência, constituindo
a expressão de determinadas intenções, que em conseqüência da situação
psicológica dada não encontram outro meio de exteriorizar-se. Tal situação é,
em geral, a correspondente a um conflito psíquico e nela fica privada de
expressão direta e derivada por caminhos indiretos a tendência vencida. O
indivíduo que comete o ato falho pode dar-se conta dele e pode conhecer
separadamente a tendência reprimida que em seu fundo existe, mas ignora, em
troca, quase sempre e até que a análise o revele, a relação causal que existe
entre a tendência e o ato. As análises dos atos falhos são, muitas vezes,
fáceis e rápidas. Uma vez advertido o falho pelo sujeito, sua primeira
ocorrência costuma trazer consigo a explicação buscada.
Os atos falhos constituem o material mais cômodo para
confirmar as hipóteses psicanalíticas. Em um trabalho que data de 1904 reuni
numerosos exemplos desta ordem, com sua interpretação correspondente, coleção
que foi logo aumentada pelos aportes de outros observadores.
O motivo que mais freqüentemente nos move a reprimir
uma intenção obrigando-a assim a contentar-se com achar expressão indireta em
um ato falho é a hesitação de desprazer. Deste modo, esquecemos fortemente um
nome próprio quando abrigamos em direção à pessoa a quem corresponde um secreto
mal-estar ou deixamos de realizar propósitos que somente a contragosto teríamos
levado a cabo, forçados, por exemplo, pelas conveniências sociais. Perdemos um
objeto quando nos tornamos inimigos da pessoa a quem nos recorda ou de quem o
ganhamos. Tomamos um trem errado quando empreendemos a viagem a contragosto e
gostaríamos de permanecer onde estávamos as nos deslocar para um lugar
distinto. Onde mais claramente se apresenta a hesitação de desprazer como causa
destas falhas funcionais é no esquecimento de impressões e experiências,
Circunstância observada já por autores pré-analíticos.
A memória é muito parcial e apresenta uma grande disposição para excluir da
reprodução aquelas impressões às quais se une um afeto penoso, ainda que nem
sempre o consiga.
Em outros casos, a análise de um ato falho resulta
menos sensível e conduz a soluções menos transparentes devido à intervenção de
um processo, ao qual damos o nome de deslocamento. Assim, quando esquecemos o
nome de uma pessoa contra a qual nada temos, a análise nos faz ver que tal nome
despertou associativamente a recordação de outra pessoa de nome igual ou
semelhante que nos inspira desgosto. O esquecimento do nome da pessoa inocente
foi conseqüência de tal relação, resultando assim que a intenção de esquecer
sofreu uma espécie de deslocamento no percurso de um determinado caminho
associativo.
A intenção de evitar desprazer não é a única causa dos
atos falhos. A análise descobre em muitos casos outras tendências que, havendo
sido reprimidas na situação correspondente, tiveram de se manifestar como
perturbações de uma função. Assim, os equívocos orais denunciam muitas vezes pensamentos
que o sujeito gostaria de manter ocultos a seu interlocutor. Vários grandes
poetas compreenderam este sentido de tais equívocos e os empregaram em suas
obras. A perda de objetos valiosos resulta ser muitas vezes um sacrifício,
encaminhado a afastar uma desgraça temida, não sendo esta a única superstição
que ainda se impõe às pessoas cultas sob a forma de um ato falho. O extravio
temporal de objetos não é senão a realização inconsciente do desejo de vê-los
desaparecer, e sua destruição, a de substituí-los por outros melhores.
A explicação psicanalítica dos atos falhos traz
consigo, não obstante a insignificância desses fenômenos, certa modificação de
nossa concepção do mundo. Além disso, achamos que a pessoa normal aparece
movida por tendências contraditórias com muito mais freqüência do que suspeitávamos.
O número de acontecimentos aos que damos o nome de “casuais” fica consideravelmente
limitado. De certo modo, é consolador pensar que a perda de objetos não
constitui quase nunca uma casualidade, e que nossa distração não é muitas vezes
senão um disfarce de intenções ocultas. Muito mais importante é o descobrimento
analítico de uma participação inconfessada da própria vontade do sujeito em
numerosos acidentes graves, que de outro modo teriam sido atribuídos à
casualidade. Este achado da psicanálise vem a tornar mais difícil a
diferenciação entre a morte por acidente casual e o suicídio, já tão difícil na
prática.
A explicação dos atos falhos apresenta um inegável
valor teórico pela simplicidade da solução e a freqüência de tais fenômenos na
pessoa normal. Mas como resultado da psicanálise, não é comparável em
importância ao obtido na sua aplicação a outro fenômeno distinto da vida
psíquica das pessoas saudáveis. Refiro-me à interpretação dos sonhos, com a
qual começa a psicanálise a situar-se diante da ciência oficial. A investigação
médica considera os sonhos como um fenômeno puramente somático, desprovido de
todo sentido e significação, não vendo nele senão a reação do órgão psíquico,
adormecido, a estímulos somáticos, que o forçam a despertar parcialmente. A
psicanálise, superando a singularidade, a incoerência e o absurdo do fenômeno
onírico, eleva-o à categoria de um ato psíquico que possui sentido e intenção
próprios e ocupa um lugar na vida psíquica do indivíduo. Para ela, os estímulos
somáticos não são senão um dos materiais que a formação dos sonhos elabora.
Entre estas duas concepções dos sonhos não há acordo possível.
Contra a concepção fisiológica, testemunha a sua
infertilidade. A favor da psicanálise pode se acrescentar o fato de ter
traduzido com pleno sentido e aplicado ao descobrimento da mais íntima vida
psíquica do ser humano milhares de sonhos.
Em um trabalho publicado em 1900 (A interpretação dos
sonhos), tratei o importantíssimo tema da interpretação dos sonhos, tendo logo
a satisfação de comprovar que quase todos os meus colaboradores na investigação
psicanalítica confirmaram e impulsionaram, com seus próprios aportes, as
teorias que iniciei neste trabalho. Hoje já se reconhece unanimemente que a
interpretação dos sonhos é a pedra angular do trabalho psicanalítico e que seus
resultados constituem a mais importante contribuição da psicanálise à
psicologia.
Não me é possível expor aqui a técnica por meio da
qual se chega à interpretação dos sonhos, nem tampouco fundamentar os
resultados aos qual a elaboração psicanalítica dos mesmos conduziu. Portanto,
me limitarei a assinalar alguns novos conceitos, comunicar os resultados
analíticos e acentuar sua importância para a psicologia normal.
Assim, pois, a psicanálise nos ensina o seguinte: Todo
sonho possui um sentido; sua singularidade procede das deformações que sofreu
sua expressão; seu absurdo é intencionado e expressa o engano, o insulto e a
contradição; sua incoerência é diferente para a interpretação. O que do sonho
recordamos ao despertar não é senão seu conteúdo manifesto. Aplicando a este
conteúdo manifesto a técnica interpretadora, chegamos às idéias latentes que se
escondem por trás dele, confiando a ele sua representação. Estas idéias
latentes já não são singulares, incoerentes nem absurdas, senão elementos
plenamente significativos de nosso pensamento desperto. O processo que
transformou as idéias latentes do sonho no conteúdo manifesto dele é designado
por nós com o nome de elaboração do
sonho, e é o que leva a cabo a deformação, em conseqüência da qual já não
reconhecemos no conteúdo do sonho as suas idéias.
A elaboração onírica é um
processo de uma ordem desconhecida antes em psicologia e apresenta um interesse
duplo. Em primeiro lugar nos revela processos novos, tais como a condensação
(de representações) e o deslocamento (do acento psíquico de uma representação a
outra), que não encontramos no pensamento desperto ou apenas como base dos
chamados erros mentais. Mas, além disso, permite-nos decifrar na vida psíquica
um dinamismo cuja ação permanecia oculta a nossa percepção consciente.
Salientamos que existe em nós uma censura, uma instância examinadora que decide
se uma representação emergente deve ou não chegar à consciência, e exclui
rigorosamente, dentro de seu raio de ação, tudo o que pode produzir desprazer
ou despertá-lo de novo.
Recordaremos que tanto esta
tendência a evitar o desprazer provocado pela recordação como dos conflitos
surgidos entre as tendências da vida psíquica encontramos já indícios na
análise dos atos falhos.
O estudo da elaboração dos sonhos
nos impõe uma concepção da vida psíquica que parece resolver as questões mais
discutidas da psicologia. A elaboração onírica nos obriga a supor a existência
de uma atividade psíquica inconsciente mais ampla e importante que a ligada à
consciência, e já conhecida e explorada. (Sobre este ponto retornaremos ao nos
ocuparmos do interesse filosófico da psicanálise). Assim mesmo, permite-nos
levar a cabo uma articulação do aparato psíquico em várias instâncias ou
sistemas, e demonstra que no sistema da atividade psíquica inconsciente se desenvolvem
processos de natureza muito distinta da dos que são percebidos na consciência.
A função da elaboração onírica não é senão a de manter
o estado de repouso. “O sonho (fenômeno onírico) é o guardião do estado de
repouso”. Por sua parte, as idéias do sonho podem achar-se ao serviço das mais
diversas funções psíquicas. A elaboração onírica cumpre sua tarefa,
representando realizado, em forma alucinatória, um desejo emergente das idéias
do sonho.
Pode dizer-se sem temores que o estudo psicanalítico dos
sonhos procurou a primeira visão de uma psicologia abismal ou psicologia do
inconsciente não cogitada até agora. A psicologia normal terá, pois, de sofrer
modificações fundamentais para harmonizar-se com estes novos conhecimentos.
Não nos é possível levar a cabo, dentro dos limites
deste trabalho, uma exposição completa do interesse psicológico da
interpretação dos sonhos. Deixando bem afirmado que os sonhos são um fenômeno
dos descobrimentos trazido à psicologia pela psicanálise no terreno patológico.
Se as novidades psicológicas deduzidas do estudo dos
sonhos e dos atos falhos possuem existência e valores reais, terão de nos
ajudar a explicar outros fenômenos. Assim sucede, em efeito, e a psicanálise
demonstrou que as hipóteses da atividade psíquica inconsciente, a censura e a repressão,
a deformação e a produção de substitutivos, deduzidas da análise daqueles
fenômenos normais, nos facilitam pela primeira vez a compreensão de toda uma série
de fenômenos patológicos, proporcionando-nos, por assim dizer, a chave de todos
os enigmas da psicologia das neuroses. Os sonhos se constituem deste modo no
protótipo normal de todos os produtos psicopatológicos e sua compreensão nos
revela os mecanismos psíquicos das neuroses e psicoses.
Partindo de suas investigações sobre os sonhos a
psicanálise pode edificar uma psicologia das neuroses, que um trabalho
continuado vai tornando cada vez mais completo. Para a demonstração, que
tentamos fazer aqui, do interesse psicológico de nossa disciplina, só
necessitamos tratar com certa amplitude dois pontos daquele amplo conjunto: a
demonstração de que muitos fenômenos da patologia que se acreditavam dever
explicar fisiologicamente são atos psíquicos, e a de que os processos que
produzem os resultados anormais podem ser atribuídos a forças motoras
psíquicas.
Tornaremos clara a primeira destas afirmações com
alguns exemplos. Os ataques histéricos foram reconhecidos, há muito tempo, como
signos de uma elevada excitação emotiva e comparados às explosões de afeto.
Charcot tentou incluir a diversidade de suas formas em fórmulas descritivas. J.
Janet descobriu a representação inconsciente que atua por trás destes ataques.
A psicanálise viu nestas representações mímicas de cenas vividas ou fantasiadas
que ocupam a imaginação do enfermo sem que ele tenha consciência delas. O
sentido de tais pantomimas fica velado aos olhos do espectador por meio de
condensações e deformações dos atos representados. Este ponto de vista resulta
aplicável a todos os demais sintomas típicos dos enfermos histéricos.
Todos eles são, em efeito, representações mímicas ou
alucinatórias, de fantasias que dominam inconscientemente sua vida emotiva, e
significam uma satisfação de secretos desejos reprimidos. O caráter
atormentador destes sintomas procede do conflito interior provocado na vida
anímica de tais enfermos pela necessidade de combater tais impulsos optativos
inconscientes.
Em outra afecção neurótica a neurose obsessiva os
pacientes ficam sujeitos à penosa execução de um cerimonial sem sentido
aparente, constituído pela repetição de atos totalmente indiferentes, tais como
os de lavar-se ou vestir-se, a obediência a preceitos insensatos ou a
observação de misteriosas inibições. Para o trabalho psicanalítico constituiu
um triunfo chegar a demonstrar que todos estes atos obsessivos, até os mais
insignificantes, possuem pleno sentido e refletem por meio de um material
indiferente os conflitos da vida, a luta entre as tentações e as coerções
morais, o mesmo desejo rechaçado e os castigos e penitências com os que se quer
compensar. Em outra distinta forma da mesma enfermidade o sujeito sofre idéias
penosas, representações obsessivas cujo conteúdo se impõe imperiosamente,
acompanhadas de afetos cuja natureza e intensidade não correspondem quase nunca
ao conteúdo das idéias obsessivas. A investigação analítica demonstrou aqui que
tais afetos se acham perfeitamente justificada, correspondendo a reprovações
baseadas, pelo menos, em uma realidade psíquica. Mas as idéias atribuídas a
tais afetos não são já as primitivas, senão outras distintas, ligadas a eles
por um deslocamento (substituição) de algo reprimido. A redução destes
deslocamentos abre o caminho até o conhecimento das idéias reprimidas e nos
demonstra que a ligação do afeto e representação é perfeitamente adequada.
Em outra afecção nervosa, a incurável demência precoce
(parafrenia, esquizofrenia) na qual os enfermos mostram uma absoluta
indiferença, achamos freqüentemente como únicos atos certos movimentos e
gestos, uniformemente repetidos, aos que se deu o nome de “estereotipias”. A investigação
analítica de tais atos (levada a cabo por C. G. Jung) permitiu reconhecer neles
resíduos de atos mímicos plenos de sentido, por meio dos quais os impulsos
optativos que dominavam o sujeito criavam antes uma expressão. A aplicação das
hipóteses analíticas aos discursos mais absurdos e às atitudes e gestos mais
singulares destes enfermos permitiu sua compreensão e sua integração na vida
psíquica conjunta do sujeito.
Analogamente, sucede com os delírios, alucinações e sistemas
delirantes de outros diversos enfermos mentais. Ali onde parecia reinar a mais
singular arbitrariedade o trabalho psicanalítico descobriu uma norma, uma ordem
e uma coerência. As mais diversas formas patológicas psíquicas foram
reconhecidas como resultados de processos idênticos, no fundo, suscetíveis de
ser apreendidos e descritos por meio de conceitos psicológicos. Em todas as
partes achamos a atuação do conflito psíquico descoberto na elaboração dos
sonhos: a repressão de determinados impulsos instintivos, rechaçados ao
inconsciente por outras forças psíquicas; os produtos reativos das forças repressoras
e os produtos substitutivos das forças reprimidas, mas não despojadas
totalmente de sua energia. Por todas as partes também encontramos nestes processos
aqueles outros a condensação e o deslocamento que nos foram dados a conhecer
pelo estudo dos sonhos. A diversidade das formas patológicas observadas na
clínica de psiquiatria depende de outros dois fatores: da
Multiplicidade dos mecanismos psíquicos de que dispõe
o trabalho da repressão e da multiplicidade das disposições
histórico-evolutivos que permitem aos impulsos reprimidos chegar a
constituir-se em produtos substitutivos.
Uma boa metade do trabalho psiquiátrico é encomendada
pela psicanálise à psicologia. Mas constituirá um grave erro supor que a
análise aspira a uma concepção puramente psicológica das perturbações
psíquicas. Não pode desconhecer que a outra metade do trabalho psiquiátrico tem
por conteúdo a influência de fatores orgânicos (mecânicos, tóxicos,
infecciosos) sobre o aparato psíquico. Na etiologia dos transtornos psíquicos
não admite, nem ainda para os mais leves, como o são as neuroses, uma origem
puramente psicógena, senão que busca sua motivação na influência da vida psíquica
por um elemento indubitavelmente orgânico, do qual mais tarde trataremos.
Os resultados psicanalíticos, suscetíveis de alcançar
uma importante significação para a psicologia geral, são demasiado numerosos
para que possamos detalhá-los neste breve trabalho. Unicamente citaremos, sem
nos determos em seu exame, dois pontos determinados: o modo inequívoco em que a
psicanálise reclama para os processos afetivos a primazia na vida psíquica e
sua demonstração de que na pessoa normal se dá, o mesmo que na enferma, uma
indiscutível perturbação e ofuscamento afetivo do intelecto.
Capítulo II
O interesse da psicanálise para as ciências não
psicológicas
A) O interesse
filológico
Ao postular o interesse filológico da psicanálise vou
seguramente mais além da significação usual da palavra “filologia”, ou seja,
“ciência da linguagem”, pois sob o conceito de linguagem não me refiro tão só à
expressão do pensamento em palavras, senão também à linguagem dos gestos e a todas
as demais formas de expressão da atividade psíquica, como, por exemplo, a
escrita. Deve-se ter em conta que as interpretações da psicanálise são, em
primeiro lugar, traduções de uma forma expressiva estranha a nós a outra
familiar a nosso pensamento. Quando interpretamos um sonho não fazemos senão
traduzir da “linguagem do sonho” à de nossa vida desperta certo conteúdo mental
(as idéias latentes do sonho). Ao efetuar este trabalho aprendemos a conhecer
as peculiaridades daquela linguagem onírica, e experimentamos a impressão de
que pertence a um sistema de expressão altamente arcaico. Assim, se observa que
a negação não encontra jamais nele uma expressão especial direta, e que um
mesmo elemento serve de representação a idéias antitéticas. Dito de outro modo:
na linguagem dos sonhos os conceitos são, todavia, ambivalentes; reúnem em si
significações opostas, condição que, segundo as hipóteses dos filólogos, apresentavam
também as mais antigas raízes das línguas históricas. Outro caráter singular de
nossa linguagem onírica é o freqüentíssimo emprego de símbolos, circunstância
que permite em certa medida uma tradução do conteúdo do sonho, sem o auxílio
das associações individuais. A essência destes símbolos não foi ainda
totalmente apreendida pela investigação; trata-se de substituições e comparações,
baseadas em analogias claramente visíveis em alguns casos, enquanto que em
outros escapa por completo à nossa percepção consciente o eventual tertium
comparationis. Estes últimos símbolos seriam precisamente os que haveriam de
proceder das fases mais primitivas do desenvolvimento da linguagem e da
formação dos conceitos. No sonho é predominantemente os órgãos e as funções
sexuais o que experimenta uma representação simbólica em vez de direta. O filólogo
Hans Sperber, de Upsala, tentou provar em um trabalho recente que aquelas
palavras que designavam primitivamente atividades sexuais experimentaram,
graças a tais processos comparativos, numerosas mudanças de sentido.
Tendo em conta que os meios de representação do sonho
são principalmente imagens visuais e não palavras, devemos compará-lo mais
adequadamente a um sistema de escrita que a uma linguagem.
Em realidade, a interpretação de um sonho é um
trabalho totalmente análogo ao de decifrar um escrito antigo figurado, como o
dos hieróglifos egípcios. Em ambos os casos, achamos elementos não destinados à
interpretação, ou respectivamente, à leitura, senão a facilitar, em qualidade
de determinativos, a compreensão de outros elementos. A múltipla significação
de diversos elementos do sonho encontra também seu reflexo nestes antigos
sistemas gráficos, o mesmo que a omissão de certas relações que em um e outro
caso serão deduzidas do contexto. Se uma tal concepção da representação do
sonho não foi amplamente desenvolvida, foi tão somente porque o psicanalista carece
daqueles conhecimentos que o filólogo poderia aplicar a um tema como o dos
sonhos.
Pode dizer-se que a linguagem dos sonhos é a forma
expressiva da atividade psíquica inconsciente; mas o inconsciente fala mais de
um só dialeto. Entre as variadas condições psicológicas que caracterizam e
diferenciam entre si as distintas formas de neurose, achamos também constantes mudanças
da expressão dos impulsos psíquicos inconscientes. Enquanto a linguagem
psíquica da histeria coincide por completo com a linguagem figurada dos sonhos,
as visões, etc., tropeçamos, em troca, com produtos idiomáticos especiais para
a linguagem ideológica da neurose e das parafrenias (demência precoce e
paranóia), produtos que em toda uma série de casos podemos já compreender e
relacionar entre si. Aquilo que uma histérica representa por meio da acusação
ou da suspeita de que se trata de envenená-la. O que assim encontra tão diversa
expressão não é senão o desejo reprimido e rechaçado ao inconsciente de
engendrar em seu seio um filho, ou, correlativamente, a defesa da paciente
contra tal desejo.
B) Interesse filosófico
Enquanto a filosofia tem como base a psicologia, terá
de atender amplamente às contribuições psicanalíticas a tal ciência e reagir a
este novo incremento de nossos conhecimentos como vem reagindo a todos os
progressos importantes das ciências especiais. O descobrimento das atividades psíquicas
inconscientes obrigará muito especialmente a filosofia a tomar seu partido, e
no caso de se inclinar para o lado da psicanálise, modificará suas hipóteses
sobre a relação entre o psíquico e o físico, até que correspondam aos novos
descobrimentos. Os filósofos se ocuparam, desde cedo, repetidamente do problema
do inconsciente, mas adotando, em geral salvo poucas exceções, uma das duas
posições seguintes: ou consideraram o inconsciente como algo místico,
inapreensível e indemonstrável, cuja relação com o psíquico permanecia na obscuridade,
ou identificaram o psíquico com o consciente, deduzindo logo desta definição
que algo que era inconsciente não podia ser psíquico nem, portanto, objeto da
psicologia. Estas atitudes resultam do fato de os filósofos terem julgado o
inconsciente antes de conhecer os fenômenos na atividade psíquica inconsciente
e, em conseqüência, sem suspeitar de sua extraordinária afinidade com os
fenômenos conscientes, nem dos caracteres que deles os diferenciam. Se, depois
de adquirir tal conhecimento dos fenômenos inconscientes alguém mantém ainda a
identificação do consciente com o psíquico, e nega, portanto, ao inconsciente
todo caráter psíquico, não objetaremos senão que a diferenciação não tem nada
de prática, toda vez que, partindo de sua íntima relação com o consciente, fica
fácil descrever o inconsciente e seguir seus desenvolvimentos, coisa impossível
de conseguir, pelo menos até agora, partindo do processo físico.
O inconsciente
deve, pois, permanecer sendo considerado como objeto da psicologia.
Todavia existe outro aspecto do qual pode a filosofia
receber o impulso da psicanálise, que é passando a ser objeto da mesma. Os
sistemas e teorias filosóficas são obra de um limitado número de pessoas de
individualidade superior, e a filosofia é a disciplina em que a personalidade
do cientista representa o maior papel. Porém: a psicanálise nos permite dar uma
descrição psicológica da personalidade (daí o seu interesse sociológico). Ensina-nos
a conhecer as unidades afetivas os complexos dependentes dos instintos que
temos de pressupor em todo indivíduo, e nos inicia no estudo das transformações
e nos resultados finais gerados por estas forças instintivas. Descobre as relações
existentes entre as disposições constitucionais da pessoa, seus destinos e os
produtos que pode alcançar graças a dotes especiais. Diante da obra artística
lhe é possível decifrar, com mais ou menos segurança, a personalidade que se
esconde por trás dela, e deste modo pode descobrir a motivação subjetiva e
individual das teorias filosóficas, surgidas de um trabalho lógico imparcial, e
destacar criticamente os pontos débeis de seu sistema. Esta crítica não é
tarefa da psicanálise, pois, naturalmente, a determinação psicológica de uma
teoria não exclui sua correção científica.
C) Interesse biológico
A psicanálise não teve, como outras ciências modernas,
a sorte de ser acolhida com um esperado interesse por parte daqueles que se
ocupam do progresso do conhecimento. Durante muito tempo se negou a ela toda
atenção, e quando não foi mais possível ignorá-la, os que se deram ao trabalho
de submetê-la a um exame detido fizeram dela objeto de uma violenta
hostilidade, dependente de razões afetivas. A causa de uma acolhida tão
contrária foi o descobrimento feito por nossa disciplina em seus primeiros
objetos de investigação de que as enfermidades nervosas eram a expressão de um
transtorno da função sexual, descobrimento que a conduziu a se dedicar a investigar
tal função, tanto tempo desatendida. Porém: quem quer que se mantenha fiel ao
princípio de que os juízos científicos não devem sofrer a influência das
atitudes afetivas, terá de reconhecer órgãos sucessivamente desenvolvidos, os
indivíduos que perecem, idéia que nos facilita, por fim, nesta orientação
investigadora da psicanálise um alto interesse biológico, vendo nas
resistências a ela opostas uma nova prova de suas afirmações.
A psicanálise fez justiça à função sexual humana,
investigando minuciosamente sua extraordinária importância para a vida psíquica
e prática, importância assinalada já por muitos poetas e alguns filósofos, mas
jamais reconhecida pela ciência. Tal investigação exigia como premissa uma ampliação
do conceito da sexualidade, indevidamente restrito, justificada por
determinadas transgressões sexuais (as chamadas perversões) e pela conduta do
bebê.
Demonstrou-se
impossível seguir afirmando a sexualidade da infância até a repentina eclosão
dos impulsos sexuais na época da puberdade. Uma observação imparcial e livre de
preconceitos provou, pelo contrário, sem dificuldade que o sujeito humano
infantil traz em si interesses e atividades sexuais em todos os períodos desta
época de sua existência e desde o princípio da mesma. A importância desta sexualidade infantil não
fica diminuída pelo fato de não ser possível traçar com plena segurança seu contorno,
diferenciando-a em todos os seus pontos da atividade a sexual do bebê. Deve-se
ter em conta que se trata de algo muito distinto da sexualidade chamada
“normal” do adulto. Seu conteúdo traz consigo os germes de todas aquelas
atividades sexuais que oporemos logo na qualidade de perversões na vida sexual
normal, parecendo-nos incompreensíveis e viciosas. Da sexualidade infantil
surge a norma do adulto através de uma série de processos evolutivos,
associações, dissociações e repressões, que jamais se desenvolvem de um modo
idealmente perfeito e deixam atrás de si, em conseqüência de tal imperfeição,
disposições a uma repressão da função de estados.
Patológicos.
A sexualidade infantil possui duas qualidades muito
interessantes biologicamente. Mostra-se composta por uma série de instintos
parciais ligados a determinadas regiões do soma zonas erógenas, algumas das
quais surgem desde o princípio, formando pares antitéticos, isto é, como instintos
com fim ativo e passivo. Do mesmo modo que nos posteriores estados de apetência
sexual não são meramente os órgãos sexuais da pessoa amada, senão todo seu
corpo, o que se constitui em objeto sexual, no bebê, é o ponto de origem de
excitação sexual e de produção de prazer sexual ante um estímulo adequado, não
só dos genitais, senão também de outras partes do soma. Estreitamente ligado a
este, achamos o segundo caráter peculiar da sexualidade infantil sua ligação
inicial às funções encaminhadas à conservação, tais como a ingestão de
alimentos, a excreção, e, provavelmente também, a inervação muscular e a
atividade sensorial.
Ao estudar com o auxílio da psicanálise a sexualidade
do adulto e observar à luz dos conhecimentos assim adquiridos a vida do bebê,
não se mostra a nós a sexualidade como uma função encaminhada tão somente à
reprodução e equivalente às funções digestivas, respiratórias, etc., senão como
algo muito mais independente, oposto às demais atividades do indivíduo e que
somente por uma complicada evolução, muito rica em restrições, é forçada a entrar
no contexto da economia individual. O caso, teoricamente muito possível, de que
os interesses destas tendências sexuais não coincidam com os da conservação
individual, aparece realizado no grupo patológico das neuroses, pois a última
fórmula em que a psicanálise concretizou a essência das neuroses afirma que o conflito
original do qual surgem as neuroses é o que nasce entre os instintos que mantém
o eu e os instintos sexuais. As neuroses correspondem a uma derrota mais ou
menos parcial do eu pela sexualidade, depois que o eu fracassou em sua
tentativa de dominar a sexualidade.
Durante nosso trabalho psicanalítico, acreditamos ser
necessário nos manter distantes dos pontos de vista biológicos e não os
utilizarmos tampouco para fins heurísticos, com o fim de evitar erros na apreciação
imparcial dos resultados analíticos. Mas uma vez terminado tal trabalho,
teremos de buscar sua confirmação biológica, e nos satisfaz ver que a
conseguimos em vários pontos essenciais. A antítese entre os instintos do eu e
o instinto sexual, à qual atribuímos a gênese da neurose, se prolonga ao
terreno biológico, como antítese entre os instintos encaminhados à conservação
do indivíduo e outros postos ao serviço da continuação da espécie. Na biologia tropeçamos
com a idéia mais ampla do plasma germinativo imortal, do qual dependem, como
órgãos sucessivamente desenvolvidos, os indivíduos que perecem, idéia que nos
facilita, por fim, a.
Exata compreensão do papel desempenhado pelas forças
instintivas sexuais na fisiologia e na
Psicologia do ser individual.
Apesar de nossos esforços por evitar em nosso trabalho
psicanalítico termos e pontos de vista biológicos, não podemos deixar de
empregá-los na descrição dos fenômenos que estudamos. O conceito de “instinto”
nos impõe como conceito limite entre as concepções psicológica e biológica, e
falamos de qualidades e tendências psíquicas “masculinas” e “femininas”, ainda
que as diferenças de sexo não possam aspirar, em realidade, a uma
característica psíquica especial. Aquilo que na vida chamamos masculinos ou
femininos se reduz, para a consideração psicológica, aos caracteres de atividade
e passividade, isto é, a qualidades que não podem ser atribuídas aos instintos
mesmos, senão aos seus fins. Na constante comunidade de tais instintos “ativos”
e “passivos” na vida psíquica se reflete a bissexualidade dos indivíduos, que é
o postulado clínico da psicanálise. Ficarei satisfeito de ter conseguido chamar
a atenção com estas considerações sobre a
Ampla mediação que a psicanálise estabelece entre a
biologia e a psicologia.
D) O interesse da psicanálise para a história da
evolução
Nem toda a análise de fenômenos psicológicos merece o
nome de psicanálise. Esta última significa algo mais que a decomposição de
fenômenos compostos em outros mais simples; consiste em uma redução de um
produto psíquico a outros que o precederam no tempo e dos quais se
desenvolveram.
O método médico psicanalítico não conseguiria suprimir
um só sintoma patológico se não investigasse sua gênese e seu desenvolvimento,
e deste modo a psicanálise teria de se orientar desde o princípio em direção à
investigação de processos evolutivos. Assim, descobriu primeira a gênese dos
sintomas neuróticos e em seu progresso posterior teve de ampliar seu raio de
ação a outros produtos psíquicos e realizar com eles o trabalho de uma
psicologia genética.
A psicanálise se viu obrigada a deduzir a vida
psíquica do adulto da do bebê, dando assim razão à afirmação de que o bebê é o
pai do homem. Perseguir a continuidade da psique infantil com a do adulto, mas
também as transformações e alterações que em tal trajetória têm efeito. A memória
da maior parte dos seres humanos apresenta uma lacuna no que se refere aos
primeiros anos de sua vida infantil, da qual só conservamos algumas recordações
fragmentárias. Pode se afirmar que a psicanálise preencheu tal lacuna,
suprimindo esta amnésia infantil dos adultos (cf. O interesse pedagógico).
Ao aprofundar-se na vida psíquica infantil realizamos
alguns descobrimentos singulares. Assim, podemos confirmar algo que já
suspeitávamos, a extraordinária importância que para toda a orientação posterior
do ser humano têm as impressões de sua infância, e muito especialmente as recebidas
em seus primeiros anos. Tropeçamos aqui com um paradoxo psicológico que só se
desfaz para a concepção psicanalítica, pois resulta que tais impressões, de
máxima importância, não aparecem contidas na memória nos anos posteriores. Mas
precisamente no que respeita à vida sexual foi onde a psicanálise conseguiu
fixar com mais precisa claridade a exemplaridade e o caráter indelével dos mais
precoces acontecimentos da vida humana. A expressão on revient toujours à ses
premiers amours5 é uma tímida verdade. Os múltiplos enigmas da vida erótica do adulto
não se resolvem senão tendo em conta os fatores infantis do amor. Para a teoria
destes efeitos deve-se ter em conta que as primeiras experiências infantis do
indivíduo não são fruto único do acaso, senão que correspondem também às
primeiras atividades das disposições instintivas constitucionais com que veio
ao mundo. Outro de nossos descobrimentos mais surpreendentes foi o de que,
apesar da posterior evolução,
Nenhum dos produtos psíquicos infantis sucumbe no
adulto. Todos os desejos, impulsos instintivos, modos de reação e disposições
do bebê subsistem no adulto, e podem voltar a aparecer sob um conjunto de
fenômenos adequados. Não ficaram destruídos, senão simplesmente sepultados pela
superposição de outros estratos psíquicos. Constitui assim um caráter
particular do passado psíquico o ser devorado por suas próprias seqüelas, como
o passado histórico. Pelo contrário, subsiste ao lado daquilo que dele surgiu
em uma simultaneidade, seja meramente virtual, seja completamente real. A prova
desta afirmação é que os sonhos do adulto normal reavivam todas as noites seu
caráter infantil e retrocedem toda sua vida psíquica e um grau infantil. Esta
mesma regressão ao infantilismo psíquico tem efeito também na neurose e na
psicose, cujas singularidades são descritas, em grande parte, como arcaísmos
psíquicos. A energia que os restos infantis conservaram na vida psíquica nos dá
a medida da disposição à enfermidade, passando esta a constituir assim, para
nós, a expressão de uma inibição do desenvolvimento. Aquilo que no material
psíquico do adulto permaneceu infantil e se acha reprimido como inútil,
constitui o nódulo de seu inconsciente, e acreditamos poder seguir na história
da vida de nossos pacientes como este inconsciente, retido pelas forças
repressoras, espia o momento de entrar em atividade e aproveita as ocasiões que
para isso se apresentam a ele quando as formações psíquicas posteriores e mais
elevadas não conseguem dominar as dificuldades do mundo real. Nos últimos anos
a psicanálise se apercebeu de que o princípio “a ontogenia é uma repetição da
Filogenia” podia ser também aplicável à vida psíquica,
e desta reflexão surgiu uma nova ampliação do interesse de nossa disciplina.
E) O interesse da psicanálise para a história da
civilização
A comparação da infância do indivíduo com a história
primitiva dos povos se demonstrou muito frutífera sob distintos aspectos, não
obstante tratar-se de um trabalho científico apenas começado. A concepção
psicanalítica vem a constituir aqui um novo instrumento de trabalho. A
aplicação de suas hipóteses à psicologia dos povos permite colocar novos
problemas e contemplar a uma nova luz os já investigados, cooperando com sua
solução.
Em primeiro lugar, parece muito possível aplicar a
concepção psicanalítica obtida no estudo dos sonhos aos produtos da fantasia
dos povos, tais como os mitos e as fábulas. Faz tempo que se trabalha na
interpretação de tais produtos, suspeitando-se que trazem consigo um “sentido
oculto”, encoberto por diversas transformações e modificações. A psicanálise
agrega a este trabalho a experiência extraída de sua investigação dos sonhos e
das neuroses, mediante a qual é possível descobrir os caminhos técnicos de tais
deformações. Mas, além disso, pode revelar em toda uma série de casos os
motivos ocultos que desviaram o mito de seu sentido original. Não vê o primeiro
impulso à formação de mitos em uma necessidade teórica de explicação dos
fenômenos naturais ou de justificação de preceitos culturais ou usos que se
tornaram incompreensíveis, senão que os busca naqueles mesmos “complexos”
psíquicos e naquelas mesmas tendências afetivas, cuja existência teve de
comprovar como base dos sonhos e da formação de sintomas.
Esta mesma transferência de seus pontos de vista,
hipótese e conhecimentos capacita a psicanálise para lançar luz sobre as
origens de nossas grandes instituições culturais, tais como a religião, a
moral, o direito e a filosofia. Investigando aquelas primitivas situações
psicológicas, em que pode ter surgido o impulso a tais criações, se faz
possível rechaçar alguma tentativa de explicação baseada em uma
provisionalidade psicológica e substituí-la por uma visão mais profunda.
A psicanálise estabelece uma íntima relação entre
todos estes produtos do indivíduo e das coletividades, ao postular para ambos a
mesma fonte dinâmica. Parte da idéia fundamental de que a função capital do
mecanismo psíquico é descarregar o ser das tensões geradas nele pelas
necessidades. Uma parte deste trabalho se soluciona por meio da satisfação
extraída do mundo exterior, e para este fim se faz necessário o domínio do
mundo real. Mas outra parte de tais necessidades, e entre elas essencialmente
certas tendências afetivas, se vê sempre negada pela realidade toda satisfação.
Esta circunstância dá origem à segunda parte do trabalho antes indicado, que
consiste em estas tendências insatisfeitas procurar uma descarga distinta. Toda
história da civilização é uma exposição dos caminhos que empreendem os seres
humanos para dominar seus desejos insatisfeitos, segundo as exigências da
realidade e as modificações nela introduzidas pelos progressos técnicos.
A investigação dos povos primitivos nos mostra os
seres humanos entregues, num princípio, a uma fé infantil na onipotência e nos
proporciona a explicação de toda uma série de produtos psíquicos, revelando-os
como esforços encaminhados a negar os fracassos de tal onipotência e a manter
assim a realidade longe de toda influência sobre a vida afetiva, e não é
possível dominá-la melhor e utilizá-la para satisfação. O princípio da evitação
de desprazer rege a atividade humana até que seja substituído pelo da adaptação
ao mundo exterior, muito mais conveniente ao indivíduo. Paralelamente ao
domínio progressivo do ser humano sobre o mundo exterior, se desenvolve uma evolução
de sua concepção do universo, que vai se afastando cada vez mais da fé
primitiva na onipotência e se eleva, desde a fase animista até a científica,
através da religiosa. Neste conjunto entram o mito, a religião e a moralidade,
como tentativas de obter uma compreensão da fracassada satisfação de desejos.
O conhecimento dos distúrbios neuróticos do indivíduo
facilitaram muito a compreensão das grandes instituições sociais, pois as
neuroses mesmas se revelam a nós como tentativas de resolver individualmente
aqueles problemas da compensação dos desejos, que teriam de ser resolvidos.
Socialmente pelas instituições. A desaparição do fator
social e o predomínio do fator sexual convertem estas soluções neuróticas em
caricaturas não utilizáveis para algo diferente de nosso esclarecimento destes
importantes problemas.
F) O interesse da psicanálise para a estética
A psicanálise conseguiu resolver também satisfatoriamente
alguns dos problemas ligados à arte e ao artista. Outros escapam por completo à
sua influência. Reconhece também no exercício da arte uma atividade encaminhada
à mitigação de desejos insatisfeitos, e isso, tanto no mesmo artista criador como
no espectador da obra de arte. As forças propulsoras da arte são aqueles mesmos
conflitos que conduzem a outros indivíduos à neurose e moveram a sociedade à criação
de suas instituições. O problema da origem da capacidade artística criadora não
é assunto da psicologia. O artista busca, em primeiro lugar, sua própria
liberação, e o consegue comunicando sua obra àqueles que sofrem a insatisfação
de desejos iguais. Apresenta realizadas suas fantasias; mas se estas chegaram a
se.
Constituir em uma obra de arte, é mediante uma
transformação que mitiga o repulsivo de tais desejos, encobre a origem pessoal
dos mesmos e oferece aos demais atrativos de primorosos de prazer, atendo-se a
normas estéticas. Para a psicanálise resulta fácil descobrir, ao lado da parte manifesta
do gozo artístico, outra parte latente, muito mais ativa, procedente das fontes
ocultas da liberação dos instintos. A relação entre as impressões infantis e os
destinos do artista e suas obras, como reações a tais impulsos, constitui um
dos objetos mais atrativos da investigação analítica.
Além disso, a maioria dos problemas da criação e do
gozo artístico esperam ainda ser objeto de um trabalho que lance sobre eles a
luz dos descobrimentos analíticos e os assinale seu posto no complicado
edifício das compensações dos desejos humanos. A título de realidade convencionalmente
reconhecida, na qual, e graças à ilusão artística, podem os símbolos e os produtos
substitutivos provocar afetos reais, forma a arte um domínio intermediário
entre a realidade, que nos nega a realização de nossos desejos, e o mundo da
fantasia, que nos proporciona sua satisfação, um domínio no qual conservam toda
sua energia as aspirações à onipotência da Humanidade primitiva.
G) O interesse sociológico
A psicanálise fez desde cedo objeto de sua
investigação a psique individual; mas neste trabalho não podiam escapar-lhe os
fundamentos afetivos da relação do indivíduo com a sociedade. Desse modo
descobriu que os sentimentos sociais recebem uma contribuição do caráter
erótico, cuja superacentuação e posterior repressão vêm a constituir-se em características
de um determinado grupo de perturbações psíquicas. Assim mesmo, reconheceu, em geral,
o caráter não social da neurose, que tendem todas as expulsar o indivíduo da
sociedade, substituindo o asilo que antes lhe brindava o claustro pelo
isolamento que a enfermidade traz consigo. O intenso sentimento de culpabilidade,
dominante em tantas neuroses, resulta a seus olhos uma modificação social da angústia
erótica.
Por outra parte, a psicanálise descobriu quão
amplamente participam as circunstâncias e exigências.
Sociais na etiologia da neurose. As forças que
produzem a limitação e a repressão dos instintos.
Aquela mesma constituição e
aquelas mesmas experiências infantis, que conduziriam o indivíduo à neurose,
não obterão tal efeito quando não existe tal docilidade ou não sejam colocadas
tais exigências no círculo social em que o indivíduo vive. A velha afirmação de
que o nervosismo era um produto da civilização tem, pelo menos, uma parte de
verdade. A educação e o exemplo situam o indivíduo jovem diante das exigências
culturais. Naqueles casos em que a repressão dos instintos chega a efeito nele,
com independência dos dois fatores citados, vamos supor que a exigência
primitiva chegou a se converter, no fim, em uma propriedade hereditária
organizada do ser humano. O bebê, que produz espontaneamente repressões de
instintos, não faria com isso senão repetir uma parte da história da
civilização. O que hoje constitui uma restrição interna foi em um tempo somente
externa imposta talvez pelas circunstâncias da época, resultando assim que
também o que hoje se coloca diante de cada indivíduo como exigência cultural
externa poderá converter-se um dia em disposição interna à repressão.
H) Interesse pedagógico
O máximo interesse da
psicanálise para a pedagogia se apóia em um princípio, demonstrado até a
evidência. Só pode ser pedagogo quem se encontre capacitado para infundir-se na
alma infantil, e nós, os adultos, não compreendemos nossa própria infância.
Nossa amnésia infantil é uma prova de quão estranhos a isso chegamos a ser. A
psicanálise descobriu os desejos, produtos mentais e processos evolutivos da
infância. Todos os esforços anteriores foram por demais incompletos e errôneos,
como conseqüência de haver deixado de lado por completo o inestimável fator da
sexualidade em suas manifestações somáticas e psíquicas. O cético assombro com
que são acolhidos os descobrimentos mais evidentes da psicanálise nesta questão
da infância os referentes ao complexo de Édipo, o narcisismo, as disposições
perversas, o erotismo anal e a curiosidade sexual dão idéia da distância que
separa nossa vida psíquica, nossas valorações e inclusive nossos processos
mentais dos do bebê normal.
Quando os educadores se
familiarizarem com os resultados da psicanálise, será mais fácil reconciliar-se
com determinadas fazes da evolução infantil, e entre outras coisas, não
correrão o perigo de exagerar a importância dos impulsos instintivos perversos
ou não sociais que o bebê venha a mostrar. Pelo contrário, se guardarão de toda
tentativa de subjugar violentamente tais impulsos ao saber que tal procedimento
de influxo pode produzir resultados tão indesejáveis como a passividade diante
da perversão infantil, tão temida pelos pedagogos. A repressão violenta de
instintos enérgicos, levada a cabo a partir do exterior, não produz nunca nos
bebês a desaparição nem a superação de tais instintos, e sim tão somente uma
repressão, que inicia uma tendência a posteriores distúrbios neuróticos. A
psicanálise tem freqüente ocasião de comprovar a grande participação que uma
educação inadequadamente severa tem na produção de distúrbios nervosos ou com
que perdas da capacidade de produção e de gozo são conquistadas a normalidade
exigida. Mas também pode ensinar quão valiosas contribuições proporcionam estes
instintos perversos e não sociais do bebê à formação do caráter quando não
sucumbem à repressão, senão que são desviados por meio do processo chamado
sublimação, de seus fins primitivos e dirigidos a outros mais valiosos. Nossas melhores virtudes nasceram, em qualidade de reações e
sublimações, sobre o terreno das piores disposições.
A educação deveria guardar-se
cuidadosamente de cegar estas preciosas fontes de energia e limitar-se a
impulsionar aqueles processos por meio dos quais são dirigidas tais energias
por bons caminhos. Uma educação baseada nos conhecimentos psicanalíticos pode
constituir a melhor profilaxia individual das neuroses.
Não podia colocar-me neste
trabalho a tarefa de expor a um público científico o alcance e o conteúdo da
psicanálise, com todas as hipóteses, problemas e resultados da mesma. Será
suficiente ter indicado claramente para quantos setores científicos resultam
interessantes suas investigações e quão numerosas relações começam a
estabelecer com os mesmo.
(1913). In: Freud, Sigmund. Obras
completas. Madrid:
Editorial Biblioteca Nueva, 1996,
pp. 1851-1867.
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