Parte III - Psiquiatria e Psicanálise
Sociedade Psicanalítica do Brasil-SPOB-POLO/RS
Um raciocínio
diagnóstico pela psicanálise-Parte (a)
Dissemos
que a resposta a nossas indagações, temos que buscá-la na fala da paciente.
Ausente da apresentação psiquiátrica, é protagonista na apresentação
psicanalítica de pacientes. Aqui, não apenas o paciente é chamado a comparecer
de viva voz como a entrevista é conduzida de modo a fazer comparecer o sujeito.
Podemos dizer, portanto, que a apresentação tem tripla função: de transmissão,
permitindo aos mais jovens acompanhar o trabalho de um analista “ao vivo”
(único contexto em que isso é possível, ainda que o analista esteja numa
situação atípica); de diagnóstico, mais-além dos fenômenos; e de encontro
clínico, cujos efeitos são imprevisíveis. No que diz respeito ao diagnóstico da
paciente aqui em questão, orientando-nos
pelo
recorte que a psicopatologia psicanalítica faz na nosologia psiquiátrica, nossa
indagação deve ser: é psicose? É neurose? Nesse caso, é neurose obsessiva? É histeria?
Uma
primeira observação indica, já, o seguinte: não há na entrevista, como veremos,
maior evidência de psicose; não há nada da ordem de uma neurose obsessiva; por
eliminação, temos uma indicação diagnóstica de histeria. No entanto essa
indicação, dando-se por eliminação, ainda não está justificada teórica e clinicamente.
Nossas tarefas, então, são duas: interrogar se, efetivamente, podemos descartar
o diagnóstico de psicose; e positivar o diagnóstico estrutural de histeria. Quanto
à hipótese de psicose, a apresentação deprimida da paciente, estuporosa, entregando-se
como objeto ao leito, ao marido e ao eletrochoque, indica a necessidade de
interrogar se não se trata de uma melancolia. Em que medida o estupor da
paciente não é uma resposta a um Outro absoluto, “caindo como objeto para completá-lo”,
como aponta Alberti (1997, p. 223)? Na depressão profunda, o melancólico está “todo
submetido ao Outro, até o ponto do estupor” (Ibid.). É certo que as aparências enganam,
mas é preciso tomá-las em consideração, ainda que para perceber esse engano, e
fenomenologicamente as duas descrições se assemelham.
Na
vertente da psicose, o que temos que buscar? Temos que buscar, nessa fala, os
fenômenos elementares (que são as alucinações verbais, o automatismo mental e, sobretudo,
os distúrbios de linguagem). Em se tratando de melancolia, temos que observar o
que é seu traço mais característico, a auto-acusação, que possui o estatuto de
um delírio. Finalmente, temos que discernir a posição do sujeito face ao lugar
do Outro – se uma posição reduzida a objeto de gozo do Outro, que adquire
consistência (psicose), ou se numa posição de responder pela fantasia ao enigma
do desejo opaco do Outro, que perde consistência de gozo (neurose). Na vertente
da neurose, temos que indagar se há uma dialetização possível da posição frente
ao Outro; indagar sobre a divisão do sujeito.
Resumidamente: não há na fala da paciente à
entrevista algo que é fundamental na melancolia, a auto-acusação. A dor, tão
enfatizada por Freud em “Luto e melancolia”, também não aparece intensamente.
Ao contrário, ela diz que sua vida é boa quando não está doente e que se não
fosse a doença ela seria feliz. A doença, por sua vez, não mostra a
centralidade do “eu” que se observa na melancolia. Ela vem de fora, “de
repente”. Também não se observam, na fala da paciente, os distúrbios de
linguagem que caracterizam a psicose (neologismos, frases interrompidas, vazios
de significação...), bem como alucinações ou delírios que traduzam a morte do
sujeito.
Do
ponto de vista da psicose, resta interrogar a posição frente ao Outro, o que podemos
fazer no desenvolvimento da hipótese de uma neurose histérica.
Interroguemos,
portanto, o diagnóstico de histeria. Temos como ponto de partida a definição
que Maria dá de sua doença: sua doença é não falar.
Reiteradamente,
ao longo da apresentação, a paciente é questionada sobre sua doença e responde
da mesma maneira. O início da entrevista é emblemático: o psicanalista pergunta
qual é o seu problema e Maria responde: “Há 18 anos que eu venho assim doente,
né? Não como, não bebo, não tomo banho, só fico em cima da cama, não falo com
ninguém”. O analista pede que explique melhor e ela diz: “Há 18 anos que eu venho
doente, não como, não bebo, não tomo banho, não falo com ninguém, só em cima da
cama”. Ele insiste, ela responde: “A doença vem de repente”. Ele pede um
exemplo: “Ah, ela vem eu começo a ficar deitada, né? Começo ficar deitada,
aí... aí eu fico... sem comer, sem beber, já não falo mais com ninguém.”
Nesse
pequeno fragmento, nessas primeiras linhas, já temos muita coisa: 1) sua doença
é não falar; 2) sua doença vem de fora, de repente, isto é, não há uma implicação
subjetiva; 3) o não falar não é apenas sua doença, mas também a posição que
Maria ocupa na entrevista.
Avançando
na entrevista, encontramos outros elementos desse não falar. Na trilha de não
se implicar, a paciente diz que sua doença é “de família” e aponta vários parentes
que sofreram da mesma enfermidade. Entre eles um irmão que “também morreu dessa
doença (...) também era calado”. Diz ela: “A doença dele era assim quase igual
à minha, calada”. Logo adiante, em resposta a uma pergunta, afirma que vem
“nervosa já desde pequena” porque “assistia a doença” desse irmão. E descreve uma
cena: “Ele ficava nervoso, ficava sem falar, a minha mãe ficava falando com
ele, ele não respondia, ficava assim nervoso, aí eu também, eu ficava nervosa”.
Tinha, então, cinco anos. Instada a falar sobre isso, acrescenta: “Eu ficava
assim também... querendo falar também, e não falava”.
Esses
fragmentos já acrescentam algumas coisas mais: 4) sua doença é igual à do
irmão, o que permite pensar num sintoma formado por identificação; 5) essa doença
(e essa possível identificação) está associada a uma cena, que envolve o irmão e
a mãe; 6) essa doença não é apenas não falar, mas querer falar e não falar, o
que mostra a divisão do sujeito em seu sintoma, ou na posição à qual está
identificada.
Esse
último ponto fica evidente também em outra fala da paciente sobre sua doença,
quando diz que o que tem não é “loucura”: “... eu sou normal, né? Eu sei o que
tá se passando (...) Eu só fico mesmo sem comer, sem beber, sem falar, mas eu
sei de tudo. Só não falo”.
Finalmente:
Maria comete um único lapso durante a apresentação. Um só, mas suficiente. No
início da entrevista, dissera mais de uma vez que vem doente há 18 anos.
Adiante, é perguntada sobre quando sua doença começou: “aos dezoito anos”. Dezoito
anos? “É. Eu tava com 46 anos”. Dezoito anos, ela já o contara antes, foi a
idade em que Maria se casou. Na ocasião, seus pais não aprovavam que ela se
casasse. Instada pelo noivo a fazer uma escolha, fugiu de casa com ele. Em
torno disso, aparece na fala de Maria uma segunda cena: sua mãe não queria
perdoá-la, então seu pai “ajoelhou nos pés dela e pediu pra ela me perdoar. Aí
ela me perdoou. Aí ela disse assim ‘tá vendo, ele gosta de você...” Esse novo
fragmento nos dá mais alguns elementos: 7) mostra a presença do recalque,
corroborando a idéia de uma estrutura neurótica; 8) é uma indicação do inconsciente
de que seus sintomas têm relação com a forma pela qual se casou; 9. há mais uma
cena associada a sua doença, a do pai de joelhos diante da mãe, pedindo por
ela, Maria. É inevitável apontar a natureza edipiana dessa última cena: o pai
mostra seu amor pela filha intercedendo em favor dela junto à mãe. Mas a cena
não mostra só o Édipo: mostra, nele, um pai fraco, um pai cuja intervenção
sobre a mãe é a de se ajoelhar, um pai que cumpre sua função simbólica com
certa precariedade. A mãe, por sua vez, não é apenas forte, mas tirânica: “Ela
gostava muito de bater, batia muito na gente; (...) eu apanhava muito”; “meu
pai não dava muita opinião não, porque a minha mãe é que gostava mais de mandar”.
Se
a clínica é a manifestação ordenada e articulada de elementos co-variantes, isto
é, se uma estrutura é dada pela relação de alguns traços pertinentes entre si,
que dispensam uma profusão fenomenológica, já temos o suficiente para uma
primeira afirmação positiva do diagnóstico de histeria: há conflito, logo, há
recalque, há sujeito dividido; o sintoma é formado por uma identificação com um
irmão, um homem; há duas cenas que indicam uma construção fantasística na base
do sintoma, e numa delas o pai é um pai fraco, objeto de disputa entre ela e a
mãe; não há implicação subjetiva, mas, ao contrário, indiferença.
No
entanto, falta algo essencial, ainda que só possamos aceder a isso pela via de
uma construção. Trata-se da posição desse sujeito na fantasia.
Temos
uma primeira cena: o irmão deixa de falar e isso faz com que a mãe, normalmente
severa, fale com ele, peça a ele que fale. Nessa cena, o mutismo do irmão coloca
a mãe como desejante e faz dele objeto do desejo da mãe, não cedendo nesse momento
à demanda que ela lhe faz para que fale.
Aos
18 anos, Maria foge de casa para consumar um casamento que os pais não aprovam.
Temos, então, a segunda cena: o pai de Maria se ajoelha diante da mulher, intercedendo
em favor da filha face a uma mãe tirânica.
Há
ainda um terceiro tempo, o do desencadeamento do sintoma, quase vinte anos
depois. Interrogada, a paciente não informa nada sobre esse desencadeamento, mas
o lapso diz o mais importante: quaisquer que tenham sido as circunstâncias desencadeadoras,
seu sintoma tem origem na forma como se casou. Ela não está doente “há 18
anos”, mas “aos 18 anos”.
Se
a fantasia é a resposta que o sujeito dá ao enigma do desejo do Outro, e está na
base do sintoma, podemos construir o seguinte: a posição de não falar à qual a paciente
está identificada é uma posição na fantasia cujo sentido é barrar o Outro e fazê-lo
desejante, faltoso, descompleto. Se o pai aparece como fraco na tentativa de barrar
o gozo da mãe (barrar o Outro), a paciente se identifica ao irmão que, com seu
sintoma, barra a mãe em sua demanda imperiosa. Se a paciente ocupa, na
fantasia, a posição do irmão, alguém estará no lugar da mãe, que cuida, mas que
fala por ela e é tirânica – no caso, o marido. Vemos, portanto, que o quadro
sintomático vem fazer o Outro desejante e colocar a paciente na cena de recusa
à demanda do Outro: fale, funcione, cumpra suas tarefas de dona de casa, etc. É
necessário, nesse ponto, voltar à questão da melancolia. Se há um insucesso do
pai, enquanto pai simbólico, em barrar o gozo da mãe; se a paciente, para
barrar o Outro, deve identificar-se como objeto e cair em posição de
mortificação; não temos aí melancolia? A interrogação é inevitável. No entanto,
como já dissemos, a fala da paciente não traz o delírio de auto-acusação
fundamental na melancolia. Além disso, parece suficientemente fundamentada a
idéia de que o estupor, o mutismo, a mortificação, entre aspas, têm mais o
estatuto de sintoma (ou de acting-out) do que de uma resposta que vem do real.
Noutras palavras, está mais na ordem do paradoxo do sintoma, de a um tempo
elidir e representar o sujeito, do que de uma desaparição do sujeito. Ou nos
termos mais conhecidos: tem o estatuto de retorno do recalcado, e não de algo
que, foracluído no simbólico, retorna no real.
Em
outras palavras, dissemos que esse sujeito não é objeto de gozo do Outro.
O
Nome-do-pai fez função simbólica. Aos 18 anos, Maria fez uma escolha que contrariou
uma mãe tirânica. Vinte anos depois, alguma coisa desarrumou-se na posição que
sustentava face a seu desejo e a esse Outro. Sua resposta foi a “dissociação”,
o estupor. No entanto, o preço do sintoma é, nesse caso, altíssimo.
É
o preço de entregar-se ao imobilismo, ao silêncio, à tristeza, ao estupor, às internações,
ao eletrochoque, para “atuar” uma fantasia.