Um texto da Maria Rita Kehl
Parte I
O que a teoria freudiana sobre a
melancolia pode ensinar ao psicanalista sobre a clínica das depressões? Muito
pouco, quase nada. No entanto, nos debates de que tenho participado
recentemente em torno desse tema, assim como em textos de diversos autores
sobre o mesmo assunto, não é incomum encontrar certa confusão entre as características
dos quadros depressivos e melancólicos, que chegam a ser abordados,
indiscriminadamente, como se fossem a mesma coisa. Não são. As características
“depressivas” do melancólico – negativismo, falta de ânimo, falta de
auto-estima, fantasias auto-destrutivas, distúrbios somáticos e outras tantas
manifestações de dor psíquica – podem se parecer, empiricamente, com as dos
depressivos. Mas assim como algumas crises histéricas e algumas construções de
pensamento delirantes entre os obsessivos podem ser confundidas com sintomas
psicóticos, a semelhança fenomenológica entre a tristeza e o abatimento dos
melancólicos e dos depressivos não são manifestações da mesma estrutura
psíquica.
Tal confusão talvez se deva ao
fato de Freud, cujo texto “Luto e Melancolia” (1915) trouxe uma contribuição
decisiva e inovadora para a compreensão da clínica da melancolia, não ter
dedicado nenhum texto ao tema das depressões. Se as noções de depressão,
estados depressivos, psicose maníaco-depressiva, ainda não terminaram de ser
resgatadas do campo exclusivo da psiquiatria para o da clínica psicanalítica, o
termo “melancolia” aportou em terras freudianas depois de percorrer a cultura
ocidental, desde Aristóteles, carregada de signos de sensibilidade,
originalidade, nobreza de espírito e outras qualidades que caracterizam o gênio
criador. Tais qualidades da alma humana não se encontram entre as observações
de Freud a respeito dos sintomas melancólicos. A teoria freudiana da melancolia
promoveu duas rupturas simultâneas: no plano clínico, seu texto de 1915 trouxe
a melancolia do campo da medicina psiquiátrica – em que era chamada de “psicose
maníaco-depressiva” – para o da clínica psicanalítica. No outro plano, o da
história das idéias, o texto de Freud acabou de afastar definitivamente a
melancolia da longa tradição pré-moderna das representações, predominantemente
sublimes, atribuídas aos homens de caráter melancólico, desde a antiguidade
grega.
A teoria freudiana sobre a melancolia ocupou um lugar tão importante no pensamento clínico do início do século XX que o conceito de depressão foi praticamente englobado pelo de melancolia, quando não confundido com ela. Nos últimos trinta anos, no entanto, o crescimento a níveis epidêmicos dos diagnósticos de depressão impõe aos psicanalistas uma separação teórica mais rigorosa entre esses dois campos clínicos. É preciso empreender novos esforços conceituais para pensar a especificidade da depressão de modo a impedir que esta forma de mal estar, agravada pelas condições da vida contemporânea, seja inteiramente apropriada pela medicina e pela psicofarmacologia. A teoria da melancolia é insuficiente para subsidiar a clínica das depressões, esta forma de mal estar que a indústria farmacêutica vem tentando circunscrever exclusivamente sob seus domínios, como se o deprimido sofresse apenas desarranjos e déficits químicos em um corpo sem sujeito.
A teoria freudiana sobre a melancolia ocupou um lugar tão importante no pensamento clínico do início do século XX que o conceito de depressão foi praticamente englobado pelo de melancolia, quando não confundido com ela. Nos últimos trinta anos, no entanto, o crescimento a níveis epidêmicos dos diagnósticos de depressão impõe aos psicanalistas uma separação teórica mais rigorosa entre esses dois campos clínicos. É preciso empreender novos esforços conceituais para pensar a especificidade da depressão de modo a impedir que esta forma de mal estar, agravada pelas condições da vida contemporânea, seja inteiramente apropriada pela medicina e pela psicofarmacologia. A teoria da melancolia é insuficiente para subsidiar a clínica das depressões, esta forma de mal estar que a indústria farmacêutica vem tentando circunscrever exclusivamente sob seus domínios, como se o deprimido sofresse apenas desarranjos e déficits químicos em um corpo sem sujeito.
Do ponto de vista da psicanálise,
a depressão resulta do empobrecimento da vida psíquica, sobretudo no que se
refere ao enfrentamento de conflitos. O abuso de soluções medicamentosas acaba
por ser cúmplice deste encolhimento subjetivo. Daí que o avanço mercadológico
dos antidepressivos não corresponda a uma diminuição dos casos de depressão.
Bem ao contrário: a supressão química do sujeito do inconsciente só faz
aumentar o mal estar. A introspecção, a tristeza, o recolhimento, a
contemplação – a vida do espírito, enfim – são desvios que atrapalham o
rendimento de uma vida cuja qualidade se mede por critérios de eficiência,
competência e disponibilidade para o consumo e a diversão. continua...