Jorge
Forbes
Quando a palavra não é mais
necessária para intermediar o que se quer, para refletir sobre o que se teme,
para inquirir o que se ignora; quando a palavra perde sua função de pacto
social, ficamos suscetíveis ao curto-circuito do gozo. O gozo que prescinde da
palavra é, em conseqüência, ilógico e desregrado.
Estamos no momento do gozo
ilógico e desregrado. Alguns exemplos dentre os mais notáveis são as
toxicofilias, o fracasso escolar, a delinqüência juvenil, as doenças
psicossomáticas. Em cada um desses quadros podemos destacar a impotência da
palavra dialogada para alterar o mau estado da pessoa.
Comecemos
pelas toxicofilias.
Houve um tempo em que o vício do
toxicômano cedia frente à interpretação de seus motivos, dos porquês. Hoje, não
é raro nos depararmos com viciados que têm todo um rosário de explicações sobre
seus hábitos tóxicos, tendo também vontade sincera de se desembaraçar e, no
entanto, continuam no sofrimento. Como nesse gozo a palavra está curto-circuitada,
o diálogo interpretativo habitual é ineficaz.
Fracasso
escolar.
O adolescente de 98/99 é
diferente do adolescente de 68/69. Há trinta anos o mais comum eram os alunos
rebeldes, contestadores das matérias, dos professores, do governo, dos métodos
hierárquicos, etc. Berravam palavras de ordem: “É proibido proibir”, “Paz e
amor”, “O povo unido jamais...”... Agora, nenhuma rebeldia, nenhuma
contestação. Dia da prova, o aluno entrega o papel em branco. O professor
alerta-o das conseqüências: a nota baixa, a recuperação, a repetência. Nada o
comove, nenhuma seqüela futura o sensibiliza. O professor se desespera, fica
aparvalhado, convoca uma junta de especialistas: o psico-pedagogo, a técnica em
psico-motricidade, a fonoaudióloga, o psiquiatra, a psicóloga, o neurologista,
o oftalmologista (vai ver que não enxerga), o otorrino (vai ver que não escuta)
e nada. O fracasso escolar resiste a todos os saberes.
Delinqüência
juvenil.
O mundo está chocado com os
crimes isolados e eventuais. Ninguém diria que aquele “menino de família”, como
se diz, bem educado, bonzinho, cordial, freqüentador das reuniões familiares,
dos clubes e das rodas de amigos - todos gente boa - possa um dia, como em puro
acaso, incendiar uma pessoa dormindo, matar sua mãe, seu pai, ou ambos,
metralhar metade da sua escola, jogar uma pedra do viaduto sobre o carro que
passa e demais barbaridades. Antes e depois, um bom menino. Por um instante, um
assassino.
Doenças
psicossomáticas.
Essa expressão ficou consagrada,
a partir de Freud, para nomear as afecções orgânicas que respondiam a um
incremento libidinal sobre um órgão, causando uma disfunção: estressado seria
mais passível a ter enfarte ou úlcera; tímido, espinhas na cara ou gagueira;
culpado, teria de gripe até câncer, etc. Crescem, na atualidade, exemplos de
moléstias, verdadeiros anacolutos da gramática corporal, aberrações psíquicas e
somáticas, quase sempre graves e de difícil manejo terapêutico.
Cabe-nos perguntar: o que está
acontecendo? Pode ser que estejamos sendo vítimas por termos alterado nosso
ecossistema sem medir os efeitos. Quando desmatamos uma região importante no
meio de uma floresta sabemos da balbúrdia que ocasionamos: algumas espécies
morrem, outras explodem demograficamente, mutações surgem, alteram-se os
hábitos.
Pois bem, a globalização foi uma
imensa mudança do ecossistema humano: mudou a noção de pátria, de família, de
poder paterno, da presença da mulher, etc. Entramos definitivamente na era em
que o Outro não existe. Se recuperarmos a divisão freudiana entre identificações
verticais, aquelas com o líder ou com um ideal, e identificações horizontais,
aquelas entre os iguais, notaremos que o lugar dos líderes e dos ideais, da
identificação vertical, foi fortemente abalado pelo prazer do provisório e da
conveniência imediata. Quer-se o gozo já, em tempo real. Gozo Internet.
Não há como voltar atrás. Não
adianta, depois de décadas de conquistas femininas, achar que o pai ainda pode
ser chamado para pôr ordem na casa como nos tempos em que sua figura era, quase
ameaçadora, da lei e do poder: pai braço armado da mãe. Tarde demais. Fizeram
os omeletes, quebraram os ovos – do pai.
Será que tudo então está perdido?
Desespero total? Ainda não. Miremo-nos nos exemplos dos próprios adolescentes,
os que mais sofrem os curtos-circuitos do gozo, as soluções que eles encontram
para, de certa forma, ordenar este gozo caótico. O nome é: “esportes radicais”.
Nunca se viu tanto esporte radical: alpinismo, bungee-jump, canoagem,
pára-quedismo, triatlon, e por aí vai. Todos eles no limite do dizível,
tentativas de captura direta do gozo.
Se esse gozo desbussolado,
desbundado, escapa ao circuito da palavra dialogada, decifrada, ele pode ser
captado pela palavra–ato, aquela que marca, que nomeia: a palavra poética, por
exemplo, que, como os esportes radicais, não explica mas capta algo do ser.
Conquista e ordena o excesso de gozo irrefreado.
É uma lição para a psicanálise,
daí ter Lacan proposto – assim deduzimos – duas clínicas: uma primeira, a da
palavra decifrada, que levantando o recalque, alivia o sintoma e uma segunda, a
clínica do gozo, onde a palavra serve para cifrar, tal qual o “piolet” do
alpinista que marca a dura pedra do gozo a ser conquistado. Se nem mesmo o
Himalaia resistiu às marcas que lhe fizeram acessível, ficamos com a esperança
que uma nova clínica psicanalítica – que já está em prática – possa melhorar os
resultados do tratamento desses sintomas da nossa época em que o Outro não
existe. Não analisamos mais como Freud analisava mas continuamos seu trabalho
em tornar o homem mais compatível e responsável com o seu gozo.
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