Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil
- Um raciocínio diagnóstico pela psicanálise - parte (b)
A direção do tratamento na psicanálise, obviamente, vai no sentido
inverso. De todo modo, um desarranjo já parece ter sido aí introduzido pela
escolha da equipe (plena de implicações clínicas) de não responder à demanda de
eletrochoque e oferecer a ela não a psicanálise, mas uma terapêutica da
palavra. Como resultado dessa oferta, uma nova demanda: dessa vez, ao sair de
seu mutismo, ela pede ao doutor que não lhe dê eletrochoque. Pouco antes da
apresentação aqui relatada, Maria iniciou atendimento com uma aluna do Curso de
Especialização em Atendimento Psicanalítico do Instituto. Nas duas entrevistas
realizadas, o marido fez questão de estar junto a ela. A apresentação de
pacientes foi a primeira ocasião em que o marido se viu impedido de participar.
Como resultado mais imediato, primeiro efeito da apresentação, o marido alegou
problemas de saúde e uma viagem para não mais trazer a paciente ao atendimento.
Semanas
depois, Maria foi novamente trazida ao hospital pelo marido, novamente em
estado deplorável. Dessa vez, porém, novos acontecimentos indicaram que essa entrevista
pode ter tido outros efeitos. Na entrevista, fora assinalada a semelhança de seu
nome com o do irmão, e também o fato de que os nomes de todos os oito irmãos e
irmãs eram compostos pela palavra “amar”. Nessa nova internação, Maria voltou a
sair do estupor e do mutismo sem eletrochoque. A primeira frase que disse foi:
O meu mal é amar demais. Um comentário final
Acompanhamos
duas lógicas diagnósticas. A psiquiátrica, fenomenológica; e a psicanalítica,
chamada estrutural, que se propõe a ir além dos fenômenos. Para encerrar, um
último comentário.
Se
o diagnóstico psiquiátrico sempre foi fenomenológico, é importante notar que,
atualmente, assistimos a uma tendência na psiquiatria. Trata-se da tendência de
substituir as grandes categorias (neurose, psicose maníaco-depressiva,
esquizofrenia, toxicomania...) por descrições especificadas de fenômenos
objetivos. Um exemplo da CID 10: “transtorno mental e de comportamento
decorrente do uso de solventes voláteis, síndrome de dependência, atualmente
abstinente, porém em ambiente protegido”. Acredite se quiser, isso é um
diagnóstico e tem um número: CID 10,F18.2.21.
É
importante reter, acerca disso, o seguinte. Essa é uma tendência mais ou menos
recente e reflete a influência exercida pelo sistema norte-americano de
classificação. A Classificação Internacional de Doenças, da Organização Mundial
de Saúde (a CID) transformou-se significativamente na versão atual (a décima),
aproximandose da lógica descritiva do Diagnostic and Statistical Manual of
Mental Disorders (DSM). Em relação à versão anterior, as categorias
nosográficas da CID são cada vez mais descritivas, detalhistas, casuísticas, em
detrimento das grandes categorias que já caracterizaram a psicopatologia
psiquiátrica. Basta dizer que o capítulo sobre “Transtornos Mentais e de
Comportamento”, da CID 10, tem mais de 360 subcategorias diagnósticas, algumas
das quais ainda podem ser mais especificadas, segundo cursem com ou sem
sintomas adicionais, em curso contínuo ou episódico, etc., o que eleva o número
final de diagnósticos possíveis a cerca de 800.
Na
introdução ao capítulo, os editores enfatizam essa ampliação como uma vantagem
e tratam ainda de outras mudanças em relação à versão anterior. Uma delas é a
abolição do uso da divisão entre psicose e neurose: “... os transtornos são
agora arranjados em grupos de acordo com os principais temas comuns ou
semelhanças descritivas”, e o termo “neurose” é reduzido a um “uso ocasional”
(CID 10, 1993: 3).
Em
termos da própria psiquiatria, isso significa uma tendência da classificação da
OMS de se aproximar da fragmentação que já caracterizava o norte-americano DSM.
Sem
nem mesmo chegarmos a evocar as categorias de sujeito e estrutura, o que se vê
aí é um empobrecimento interno à própria lógica psiquiátrica. Empobrecimento que
consiste em privilegiar a descrição dos sintomas, privilegiar a síndrome em detrimento
da doença, em detrimento da categoria de doença. No que diz respeito à interessante
distinção entre diagnóstico sindrômico e diagnóstico, isso resulta em eliminá-la
na prática, uma vez que o diagnóstico nosológico é, cada vez mais, um diagnóstico
sindrômico. Essa minúcia descritiva parece formalização, mas na verdade vem no
lugar da formalização das grandes categorias. Não por acaso, os editores reivindicam
que as descrições e diretrizes diagnósticas da CID “não contêm implicações
teóricas” (1993: 2).
Internamente
à discussão psiquiátrica, isso não é irrelevante. Denota uma vitória hegemônica
da dita psiquiatria biológica e uma derrota, talvez momentânea, daqueles que
pensam a clínica em outra perspectiva. E significa um empobrecimento da clínica,
o que é inclusive afirmado por muitos psiquiatras. Felizmente, no caso aqui estudado,
a obediência às minúcias classificatórias não impediu que o psiquiatra e a equipe
conduzissem o caso com notável sensibilidade clínica e discernimento. Não por
acaso, a paciente saiu do estupor sem ECT, mas pela conversa intensiva ao pé do
leito – exemplo da boa clínica psiquiátrica, resgatando a clínica como prática
que se faz junto ao paciente, ao leito, e como mediação entre o universal da
nosografia e o singular de cada caso.
Uma
maneira interessante (porque não habitual) de marcarmos as limitações do diagnóstico
em psiquiatria é recorrer a um manual interno ao seio da própria psiquiatria,
mas aí dissonante. O Manual de Saúde Mental aqui citado (SARACENO et. al., 1994)
foi traduzido, em 1991, pelo Ministério da Saúde do Brasil como um “guia básico
para atenção primária”. Esse manual critica o DSM por suas “categorias
diagnósticas muito articuladas e requintadas que não têm aplicação prática na
realidade clínica” e elogia a CID (então na nona edição) por ser um sistema de
classificação “simples e útil” e propõe um “diagnóstico em grandes categorias”.
Significativamente, esse manual – psiquiátrico – divide as patologias entre
aquelas caracterizadas “por um conflito entre o sujeito e suas defesas para com
suas próprias pulsões” (são as “neuroses, transtornos de personalidade,
distúrbios psicossomáticos, alcoolismo e abuso de fármacos e de drogas”); e
aquelas que “se desenvolvem segundo uma vertente de desintegração” (são a
“esquizofrenia e psicoses afetivas”). Finalmente, o manual define o diagnóstico
psiquiátrico como “uma agregação de sintomas”. Adiante, afirma que, como dado
isolado, o diagnóstico psiquiátrico “serve principalmente para estabelecer a
estratégia de intervenção psicofarmacológica” (SARACENO et. al., 1994, p.
13-6).
Assim
estabelecidas, na própria psiquiatria, as limitações do diagnóstico
psiquiátrico, mencionemos o “mais-além dos fenômenos” que é próprio do diagnóstico
psicanalítico. François Leguil (1986, p. 61 e segs.) define esse “mais além”
como sendo a exigência de que o diagnóstico diga “as maneiras como se repartem
na estrutura os efeitos de uma confrontação com o enigma do desejo do Outro”.
Leguil recorre ao grafo do desejo, de Lacan, para dar ainda outra formulação a
esse “mais-além”. O grafo indica que o sujeito responde ao enigma do Outro em quatro
níveis: no nível das identificações ideais, “o diagnóstico confina com a etiqueta”;
no nível do eu e dos semelhantes, o diagnóstico interessa ao sociólogo; no nível
exclusivo do sintoma, o diagnóstico indica o “significado do Outro”, enquanto que
à clínica interessa o que resulta disso para o sujeito; logo, o diagnóstico
deve ser situado no nível em que a fantasia se implica no sintoma. Foi o que se
tentou desenvolver no diagnóstico psicanalítico do caso de que tratamos aqui.
No entanto, em psicanálise, o diagnóstico é de estrutura, mas é também sob
transferência. O que exige mais uma palavra sobre a apresentação de pacientes.
Nela,
é discutível dizer que se está sob transferência. Todavia, o analista não abre
mão de ocupar um lugar, e de fazer um trabalho que venha produzir uma certa
fala, que possa, idealmente, mostrar algo da posição do sujeito na fantasia
(assim foi na apresentação aqui relatada, como pudemos ver). Portanto, não se
trata apenas de dizer que a fala do paciente está presente na apresentação
psicanalítica e ausente na psiquiátrica (na psiquiatria mais fiel à tradição
clínica, a fala do paciente também está presente). Trata-se de que na
apresentação (entrevista) psicanalítica, essa fala é produzida, num certo
registro da transferência, no registro de um certo endereçamento. Aí reside a
tentativa do mais-além dos fenômenos. O mais-além dos fenômenos é a relação, a
posição diante do outro.
Assim
como um diagnóstico decorre de uma definição prévia (explícita ou implícita)
sobre a função de uma terapêutica, também influencia, ele mesmo, os alcances de
um tratamento. No caso aqui apresentado, o diagnóstico de transtorno depressivo
recorrente só alcançará iluminar e intervir sobre cada recorrência depressiva.
A psiquiatria resolve esse problema intervindo sobre as situações mais agudas e
encaminhando esses pacientes para a “psicoterapia”. Certo, mas aí começa o
trabalho. Ao propor que o diagnóstico incida não exclusivamente sobre o
sintoma, mas sobre a implicação do sujeito no sintoma, a psicanálise cria as
condições para que a própria intervenção clínica vá mais-além.
Referências
ALBERTI,
S. Os quadros nosológicos: depressão, melancolia e neurose obsessiva. In: A dor
de
existir e suas formas clínicas. Rio de Janeiro: Kalimeros, 1997.
CID
10 / ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE – Classificação de Transtornos Mentais e de
Comportamento
da Classificação Internacional de Doenças. 10ª ed. Porto Alegre:
Artes
Médicas, 1993.
DSM-IV /
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION – Diagnostic and Statistical Manual of
Mental
Disorders. 4th ed. DSM-IV American Psychiatric Association, Washington,1994.
FIGUEIREDO,
A.C. A relação entre psiquiatria e psicanálise: uma relação suplementar.
Informação
psiquiátrica, v. 18, n. 3, p. 87-9, 1999.
FREUD,
S. Luto e melancolia. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas.
Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. XIV.
KAPLAN,
H. e SADOCK, B. Compêndio de psiquiatria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
LEGUIL,
F. Mais-além