Ensaios
sobre a sexualidade
Há 100 anos Sigmund
Freud publicava um clássico da psicanálise
Que
lugar ocupam hoje as teorias sexuais de Sigmund Freud (1856-1939) apresentadas
há um século na obra Três ensaios sobre a sexualidade? Esse texto, que figura
ao lado de A interpretação dos sonhos como o mais importante trabalho do autor,
provocou reações indignadas entre seus pares. O que mais chocou os
contemporâneos de Freud foram as teses sobre a existência de uma sexualidade
infantil, que a muitos parecia uma idéia indecente. Embora hoje conceitos como
auto-erotismo, pulsões, instintos sexuais, recalque, complexo de Édipo, entre
outros, façam parte do cotidiano e estejam presentes em livros e revistas de
orientação a pais, foram necessários mais de 50 anos para se aceitar que é
preciso compreender a sexualidade no contexto de uma teoria do desenvolvimento
psíquico, que tem início no nascimento. Entretanto, os avanços trazidos por
Freud nesse campo vão muito além da educação infantil.
Apesar de ter introduzido a idéia de que há
uma ligação entre sexualidade, prazer, motricidade e cognição e de ter mostrado
que esses nexos são fundamentais no desenvolvimento de bebês e crianças, Três
ensaios sobre a sexualidade também chocava pelo modo como Freud concebia o
comportamento sexual adulto. As atividades sexuais que não estivessem
diretamente envolvidas na procriação (sexo oral e anal, sadomasoquismo,
exibicionismo, voyeurismo, fetichismo etc.) eram na época consideradas “desvios
sexuais“. Embora já há muito tempo houvesse militantes a favor de várias
práticas sexuais, tentando tirá-las da sombra, Freud – diferentemente do
Marquês de Sade (1740-1814) ou dos sexólogos da época – propôs um modelo de
desenvolvimento psicossexual que incluía esses aspectos eróticos a partir de
argumentos teóricos e observacionais.
Ressaltando a plasticidade da sexualidade
humana, Freud argumentava que as diversas tendências “perversas“ emanavam de
zonas erógenas universalmente presentes no ser humano, em parte já pré-formadas
e em parte erotizadas a partir de experiências da infância e dos estímulos
oriundos do mundo adulto. Segundo Freud, cada elemento de nossa matriz erótica
(pele, paladar, olfato, tato etc.) – e suas diversas atividades associadas
(cheirar, chupar, tocar etc.) – poderia, sob circunstâncias diversas, conhecer
maior ou menor grau de autonomia em nossas fantasias e tornar-se predominante
ao longo do desenvolvimento psicossexual.
Adotando uma postura não-moralista e avançada
até mesmo para os parâmetros atuais, Freud afirmava que, em suas formas
extremas, tais práticas só deviam ser tratadas se trouxessem sofrimento e
afetassem a totalidade da psique, o que depende também do contexto social e
cultural em que ocorrem. Assim, Freud ajudou a humanizar e a normalizar (não a
normatizar) nossa visão dessas práticas (passíveis de condenação social e
judicial no seu tempo), encarando-as como peculiaridades individuais ou como
preliminares que enriquecem a vida sexual.
Também é mérito dos Três ensaios a contribuição
para a idéia de que a homossexualidade não é uma perversão de caráter ou
doença, mas fruto de uma soma de fatores hereditários e adquiridos. Para além
das idéias simplistas de degenerescência biológica, Freud tornava mais complexo
o ponto de vista genético, fazendo-o interagir com as circunstâncias
ambientais. Ao ressaltar a condição intelectual e ética e as realizações
artísticas dos homossexuais – sugerindo que, mais do que curá-los, cabia
ajudá-los a suportar os preconceitos sociais –, ele antecipou em quase um
século o que agora se começa a pensar a respeito da homossexualidade.
Entretanto, afora os impactos no âmbito da
educação, na esfera jurídica e na concepção social de sexualidade ‘normal’, as
teorias apresentadas em Três ensaios também foram essenciais para o
desenvolvimento atual da psicanálise. O texto concentra um sem-número de
problemas que iriam ocupar o próprio Freud e os psicanalistas nas décadas
seguintes, sendo hoje muito estudado nos centros de formação psicanalítica em
todo o mundo.
Folha de rosto da versão original de Três
ensaios sobre a sexualidade.
Questões de gênero
De
especial interesse para os contemporâneos são as concepções freudianas sobre
masculino/feminino. Para Freud, do ponto de vista anatômico e psíquico ninguém
é totalmente masculino ou feminino, mas reúne combinações variadas de traços
físicos e psíquicos dos dois gêneros. Sua idéia é de que a identidade sexual é
uma construção psicossocial. Cada menino ou menina terá de constituir sua
sexualidade e identidade a partir de uma bissexualidade potencial. Só ao longo
do desenvolvimento psicossexual se desenvolverão ou atrofiarão determinados
caracteres masculinos e femininos, formando um mosaico de configurações
anatomopsíquicas. De certo modo ele afrouxou as certezas identitárias que a
sociedade propõe ao masculino e ao feminino e introduziu uma variável cultural
e relativística a partir da qual masculino e feminino designam, mais do que
nossa anatomia, a posição que cada indivíduo assume perante o desejo, o gozo e
os objetos de prazer.
Aqui chegamos àquela que talvez tenha sido a
mais importante inovação de Freud no campo da sexualidade: o modo como ampliou
a noção de sexualidade para muito além da esfera genital. Essas relações
abarcam temas tão variados como o conceito de “pulsão parcial“ (prazer ligado à
função dos órgãos, a exemplo do prazer que sentimos ao morder algo crocante,
ser acariciados ou ouvir um timbre de voz agradável), “gozo passivo”, ”gozo
ativo“ (modos como nos imaginamos gozando em relação aos objetos de prazer) e o
fenômeno do narcisismo, presente não só no amor como também nas relações
humanas em geral (tendência de nos encantarmos com nossa própria imagem, mesmo
quando projetada em outrem e reconfigurada naquilo que gostaríamos de ter
sido).
Entre esses conceitos, todos ligados a uma
noção de sexualidade expandida, cabem mencionar dois outros que ainda geram
polêmica: a “angústia da castração“ e a controvertida “inveja do pênis“. Ambos
devem ser entendidos metaforicamente (no contexto freudiano, o pênis não é
redutível ao órgão genital masculino, mas à sua mistificação e generalização
como símbolo de poder, na forma de ‘falo‘). Apesar da banalização ocorrida
posteriormente, o conjunto desses conceitos permitiu que se refinasse em muito
a clínica psicanalítica, desvinculando a questão do gênero da anatomia, bem
como ampliando a sexualidade para além da genitalidade, introduzindo-a como
elemento chave nas diversas patologias do desejo (neuroses).
Finalmente, para dar uma dimensão da amplitude
dos temas abordados por Freud nos Três Ensaios, vale mencionar um que o
obcecava e até hoje desafia as neurociências: a transformação de quantidades
físico-químicas de estímulos nervosos que chegam ao cérebro em sensações de
qualidades psíquicas (prazer e desprazer). Desde seus estudos em neurologia,
Freud propunha uma intrincada relação entre quantidades de estímulos acumulados
e prazer (carga e descargas de tensão correlacionando-se respectivamente com
desprazer e prazer de alívio). Mais tarde, em seu texto O problema econômico do
masoquismo, de 1924, essa relação será complementada com a reabilitação de uma
hipótese que o próprio Freud havia discutido no texto Projeto para uma
psicologia, de 1895, em que defendia a existência de um terceiro fator: o
período (ritmo) de disparo sináptico, a ser considerado ao lado dos fatores de
intensidade. Ambas as concepções freudianas se recobrem com o entendimento
atual da neurologia, que considera, além da intensidade, o ritmo (período) dos
disparos sinápticos como fator de modulação qualitativa das percepções
afetivas.
Ao longo dos últimos 100 anos, as idéias
apresentadas nos Três ensaios fizeram história e alteraram profundamente nosso
modo de conceber a sexualidade. Embora considerando sempre o muito que ainda
não sabemos, Freud abriu caminhos e arriscou hipóteses, muitas das quais seriam
rejeitadas ou aperfeiçoadas. Mas, acima de tudo, foi suficientemente corajoso
para lançar concepções polêmicas – a exemplo do que haviam feito em seu tempo
Sócrates (c. 470-399 a.C.), Galileu (1564-1642) ou Darwin (1809-1882) – e a pagar um preço por essa atitude. À medida
que o impacto das idéias for se diluindo e novas concepções forem se superpondo
às teses freudianas, em algum momento os Três ensaios se tornarão parte da
história do pensamento. Hoje é um texto vivo que dialoga intensamente conosco,
lançando questões para as neurociências, a antropologia, a psicologia social, a
análise literária e, acima de tudo, para a psicologia deste início de século
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