Emoções no Divã; de
Eduardo Mascarenhas
o ciúme enlouquecido não é atenuante para um
crime — não há ninguém que poderia dizer que jamais cometeria um
crime passional — a responsabilidade do crime passional não é de quem
abandona ou procura um novo amor
Existe sentimento mais explosivo
do que o ciúme? Quem já o sentiu — e todo mundo já o sentiu, mesmo que nem se
lembre — sabe que a resposta é não. Claro que não estou me referindo ao ciuminho. Estou, isso sim, me referindo ao ciúme barra pesada, aquele que parece que a
gente engoliu urânio enriquecido e está com trinitroglicerina nas veias. Nesse
estado, nosso pavio fica curto e a qualquer atrito pode haver uma explosão de
fúria, ódio e rancor. À menor provocação, a gente vira uma espécie de Incrível
Hulk: verde de ódio, babando mágoa e soltando fogo por
todas as
ventas. Não é à toa que a crônica policial
de todas as épocas está cheia do sangue derramado pelo que se convencionou
chamar de crime passional.
No
Brasil, esses crimes passionais ocorrem regularmente em todas as classes sociais. Não é
crime de pobre, nem de rico. Dá em todo tipo de gente. Recentemente, um médico
assassinou a tiros sua esposa universitária. Menos recentemente, Doca Street e Lindomar Castilho também
dispararam suas armas naquelas que um dia foram seus amores. Isso só para citar
os mais famosos.
Também
não é verdade que crime passional seja
apenas expressão do machismo, se bem que o machismo seja um de seus fatores. Se
um dia o machismo deixar de existir, não tenho dúvida de que diminuirão os
crimes passionais. Mas eles
jamais deixarão de existir. Sabem por quê? Porque o ciúme é eterno, sempre
existiu e existirá para sempre. Estarei eu, então, ao reconhecer a força
vulcânica do ciúme, absolvendo ou atenuando os crimes passionais? De modo nenhum. Exatamente por
reconhecer a tentação do matar por ciúmes, acho que a punição dos crimes passionais deve ser exemplar. Se não for, vai
sair gente matando gente sem parar por aí.
A
severidade penal e moral sobre um crime deve ser tanto maior quanto maior for a
tentação de praticá-lo. Não se
trata, pois, de fazer filosofia. Trata-se de conter
a tentação ao crime. Por isso, justamente os crimes “mais compreensíveis”, “mais humanos”, aqueles que a gente se
sente mais perto de cometê-los, são os que devem merecer a maior
vigilância social. Até para nos proteger de nós mesmos, além de nos proteger
dos outros. Portanto, ao reconhecer o poder quase enlouquecedor do ciúme, estou
mais do que nunca defendendo a sua mais severa repressão, a sua mais exemplar punição. Ao admitir que
quem ama mata, mais do que
nunca esbravejarei que quem ama não mata.
Como
jurado, não consideraria atenuante de um crime de morte ter sido ele motivado
por um ciúme enlouquecido.
Tanto é
verdade que a repressão contém a fúria criminosa, que as mulheres, cuja
agressividade é mais reprimida
que a dos homens, são menos dadas aos crimes passionais.
Não é que a violência feminina seja menor que a masculina; ela é apenas mais reprimida.
Não se
trata de reprimir os ciúmes, pois isso equivaleria a uma lobotomia na nossa
natureza. Deixaríamos de ser gente de carne e osso, com sangue nas veias, e nos
converteríamos em quase vegetais. Nada mais humano do
que o ciúme. Agora, reprimir sua face assassina é uma obrigação jurídica, moral
e educacional.
O ciúme
vem do instinto. É o instinto de lutar por aquele que se ama, não perdê-lo. No entanto, é preciso fazer uma clara
diferença entre o Dragão da Maldade e o Santo Guerreiro. Como começar a
perceber que estamos ingressando no perigoso terreno do crime passional? Como saber que já estamos expostos
a perigosas tentações e o que fazer ou para não chegarmos aí ou para não irmos
adiante? Ao longo deste capítulo procuraremos responder essas perguntas.
Os crimes
passionais encharcam
de sangue as páginas policiais. O vinho daquilo que um dia foi amor transformou- se no vinagre do ódio assassino. O
motivo invariável: ciúmes. O problema mais trágico
desses crimes é que, muitas vezes, não são praticados por delinquentes frios e
degenerados. Não; são praticados por gente igual a gente. Num certo sentido,
ninguém pode jurar que não seria, em condições extremas, capaz de praticar um
crime passional. Essa afirmação,
contudo, jamais deve ser entendida como incentivadora de benevolência para os
crimes praticados por aqueles que estão enlouquecidos pelos ciúmes. Como já
dissemos, justamente por ser uma tentação poderosa em todo aquele que se sente
traído e abandonado, o crime passional deve ser
punido exemplarmente, no mais pleno
rigor da lei, sem contemporizações ou atenuantes.
Nenhum delito exerce tamanha tentação quanto o crime passional. E o estranho é que os crimes passionais ocorrem,
exatamente,
nos relacionamentos que não estavam muito bons. Melhor dizendo, estavam
péssimos, com um desinteresse e um ódio crescentes no casal. É óbvio, jamais
pessoas vivendo um sonho de amor iriam “trair” ou serem “traídas”, abandonar ou serem
abandonadas. Ninguém vivendo um lindo amor iria buscar um novo amor.
Saber como alguém pode começar a
pressentir que esteja entrando no perigoso terreno das tentações aos crimes
passionais é extremamente importante, pois afinal é sempre melhor prevenir do
que remediar, principalmente aquilo que não terá mais remédio. Para se prevenir
do ciúme enlouque- cedor, a primeira coisa a fazer é não evitar a verdade progressiva
dos fatos, não fazer vista grossa para as evidências, não tentar tapar o sol
com a peneira. Quem está de olho aberto, disposto a ver as coisas como elas
são, jamais poderá ser pego no contrapé, desprevenido, sem força para reagir.
Não se trata de ficar paranóico, enxergando fantasmas. Trata-se apenas de estar
aberto para o real, seja ele qual for. O otimismo cego de hoje pode ser o
desespero assassino de amanhã.
Digo isso porque quem está
atento, mas atento de verdade, com as antenas que Deus nos deu, percebe desde
os primeiros indícios a desagregação do relacionamento. Não poderá, pois, vir
ase sentir traído e nem ser, de um dia para o outro, abandonado. Insisto nisso,
porque nada enlouquece mais o ciúme do que ser pego desprevenido. A mente
humana precisa, acima de tudo, de tempo para digerir as coisas. Se tiver tempo
pode digerir um boi. Basta ir aos poucos,comendo-o em pedacinhos. Agora, se
tiver que digerir um boi de uma vez só, explodirá de desespero.
Tanto isso é verdade que,
invariavelmente, quando um casal se separa, há turbulência, no mínimo, de uma
das partes. Entretanto, com o tempo, a turbulência passa e se restabelece uma
razoável normalidade. O tempo cura tudo. Essa verdade invariável nos leva a
concluir que, caso aquele crime passional não tivesse sido levado a cabo, no
fim de algum tempo jamais seria praticado. O sangue já não
estaria fervendo nas veias, o peito já não estaria arrombado de carência e de
saudade, a cabeça não estaria enlouquecida de ciúmes.
A enorme
vantagem de estar de olho vivo num relacionamento de amor é que, ao perceber
seu progressivo desmoronamento, ambas as partes vão se preparando interna e
externamente para o pior. Cada qual vai podendo, aos poucos, chorar seu luto
pelos sonhos que se foram, ir se desinvestindo daquele amor e se preparando
para o que der e vier. Ser pego de surpresa é uma barra. Agora, não me venham
com desculpas: ninguém, disposto a enxergar a realidade, seja ela qual for,
será jamais pego de surpresa. A sensação de traição e abandono só aparece nos
espíritos desavisados.
Essa
história de ter sido traído ou abandonado é papo- furado. Ninguém, no exercício
pleno de sua sensibilidade, pode ser traído ou abandonado de uma forma completamente
trágica e inesperada. Só é traído óu abandonado aquele que, por omissão,
covardia, displicência, se deixar ser traído e abandonado. Só são pegos no
contrapé aqueles que, ao invés de enxergar as coisas como elas são, preferiram
enxergá-las do jeito
que preferiam que elas fossem. Só quem vive no mundo dos sonhos, do otimismo
cego, pode ser surpreendido de uma forma trágica e incontrolável. Quem tem os
pés no chão jamais perde a cabeça ...
Portanto,
a responsabilidade do crime passional
não
é de quem abandona ou procura um novo amor. É, sim, de quem praticou. Foi pego
de surpresa porque se recusou a enxergar a evidência dos fatos, quer por
vaidade ferida, quer por falta de garra de ir à luta. Não me venham, pois, com
essa história de que a vítima real foi quem matou e a culpa de quem morreu.
Não, a vítima foi quem morreu e a culpa é de quem matou.
Como acompanhar o caminho seguido
por uma mente até chegar à fúria assassina? Em primeiro lugar, você está se
dando mais do que recebendo de volta? Está se
entregando mais do que a outra pessoa
a você? Cuidado, porque a generosidade de hoje pode ser o rancor de amanhã.
Além do mais, se você não for um fino
estrategista, com um refinado instinto de se dar bem, sua entrega demasiada,
seu amor sem contrapartida, ao invés de emocionar o outro pode é lhe gerar um
progressivo menosprezo, até a mais fria indiferença. Descabelar-se por alguém que não se descabela por nós é um gesto arriscado. Na maior parte
das vezes gerará mais descabelamento em quem já está se descabelando e menos em quem já não o está. Ao invés de
comover, gera um sentimento tipo “o que vem de baixo não me emociona”. No lugar de inspirar ternura,
sensualidade e paixão, inspirará desprezo, antipatia e implicância. O carinho
será sentido com repulsa; o olhar enamorado, com desdém.
Se você estiver sentindo que está perdendo o
pulso da relação, que quer estar mais junto do que a outra pessoa, que seu
relacionamento está virando uma gangorra (quanto mais você se rebaixa, mais o
outro fica por cima), é melhor começar a se prevenir para não ser pego de
surpresa.
Você só enxerga a pessoa com a qual está se
relacionando, enquanto ela é peito aberto para o mundo? Cuidado. Quando um
relacionamento está equilibrado as coisas não são assim.
Você está se sentindo incapaz de conquistar
outras pessoas ou achando a pessoa com a qual você convive areia demais pro seu
caminhão? Previna-se, pois muito crime passional foi praticado por essa razão.
É aquele homem mais velho que teme não conseguir outra mulher tão jovem e
graciosa quanto a sua, é aquela mulher que teme algo equivalente.
O outro está crescendo mais do que você, você
está ficando para trás e, por mais que haja advertências, você permanece sem
pique? Isso pode ser na área sexual, na beleza das emoções, na capacidade de
jogar os infinitos jogos que o amor propõe, na disposição a se renovar, a
abandonar rígidos valores. Afora a área profissional, é claro.
A pessoa com quem você convive está mais
preparada para o que der e vier do que você? Você acha que ela sentirá, no caso
de uma separação, menos dor? Atenção a esse detalhe, pois nada nos deixa mais
infelizes do que percebermos a felicidade nos olhos daquela pessoa que não
vive mais conosco. Isso poderá mais adiante deixar qualquer um enlouquecido de
saudade e de ciúmes.
Quem mata, mata porque admite viver sem
aquele que um dia foi o seu amor. Mas não com ele vivo, feliz nos braços de um
outro alguém. Nada incendeia mais a infelicidade em fúria do que a felicidade
daquele que nos deixou. Prefere-se ele morto do que cheio de vida, amando e
fazendo amor com seu novo amor. Há no desespero que mata não só amor ferido. Há
também vaidade ferida, orgulho ferido, narcisismo ferido, auto-estima ferida.
Como ninguém sabe o que pode sentir em
determinadas rupturas bruscas de relação, é melhor prevenir do que remediar.
Muita gente mata, não porque ame tanto assim; mata é porque não agüenta a
sensação de derrota no jogo do amor, ou melhor, na queda-de-braço do amor. Para
não ver o outro ganhar, prefere matar.
O melhor é não
negar os fatos. Na queda-de-braço do amor a pessoa com quem você convive está
levando a melhor, está passando a sensação de que poderia viver sem você melhor do que você sem ela? Então, vá abrindo seus olhos
para outras pessoas do mundo, porque nada alivia mais a perda de um amor do que
o aparecimento de um novo amor. Ou, pelo menos, a possibilidade desse
aparecimento. Pense no motivo por que essa pessoa o está deixando, por que ela
já não gosta tanto quanto antes de você e por que você cada dia se liga mais a
ela. Estará ela representando seus sonhos de conquista profissional? Se
estiver, ao invés de ir vivendo através dela, se realizando através dela, comece
imediatamente a ir à luta, a investir no lugar certo. E o lugar certo não é no
amor a essa pessoa, é no campo profissional mesmo. Estará essa pessoa passando
à sua frente no pique
sexual, afetivo e na capacidade de viver só? Ao invés de aumentar sua paixão
por ela, invista sua paixão no lugar certo: na sua sexualidade, no seu pique
afetivo e na sua independência.
Se você
já tentou tudo e não adiantou, se você já se sente ingressando na perigosa
região das emoções assassinas, busque imediatamente auxílio médico. Eu sei que
é difícil, que o orgulho não deixa, que a pessoa não sai da cabeça. Mas, se
necessário for, tome tranqüilizantes e busque
até uma internação. Trancafie-se em algum lugar de que você não possa sair
movido por seus impulsos em fúria. Interdite-se, ponha-se em alguma espécie de
prisão, para não ter de ir mais
tarde
para a prisão. Um psiquiatra pode fazer isso por você. Se não dá mais para se segurar pelas próprias
forças, segure-se auxiliado por forças externas.
Digo isso porque se não existe bem
que sempre dure, também não existe mal que nunca desapareça. E você verificará
que é perfeitamente possível viver longe daquela pessoa. Provavelmente
descobrirá até que pode viver melhor sem ela do que com ela. Afinal, o
relacionamento já não estava tão bem assim. E é justamente o reconhecimento da
falência do relacionamento que pode afastar das pessoas emoções que,
desenfreadas, um dia podem se tornar verdadeiramente assassinas.