*Se há
empreitada que realmente não é fácil de se realizar é analisar, ou melhor,
psicanalisar,
desmontamos, componente por componente, o conjunto que é o paciente
que se senta na nossa frente. Somos terapeutas, quando, integralmente, respondemos
às expectativas daquele ser que nos buscou no consultório, com queixas que
podem variar entre um “não consigo arranjar um namorado!”, passando por “Estou
sentindo um medo, não sei de quê!”, até um vastíssimo sentimento de culpa por
ter concordado com o desligamento de todo um equipamento que mantinha
respirando alguém num quadro de morte cerebral.
*Há um
problema inicial que surge quando se faz psicanálise, mas que, na verdade, não
é dos mais graves: acontece, em quase 100% das vezes, que o nosso paciente nos
busca, trazendo na ponta da língua um auto-diagnóstico,
residindo o problema, no fato de que é a nós que compete o diagnóstico, que se
delineará quando tivermos identificado a patologia. Resume-se a situação
dizendo-se que o paciente chega buscando a cura, enquanto nós o abordamos
buscando uma doença... Há até aqueles que sugerem terapias, indicando
aconselhamentos, hipnose, relaxações. Quando isso acontece, há que se ser firme
nas sondagens (ensaios) referentes à capacidade de associar, de aceitar as
interpretações, com o fim de, com diplomacia e habilidade, patentear que há uma
fundamentação técnica nos nossos procedimentos e que, em nenhum momento, prevalecerá, no consultório, o princípio do bom-senso.
*Vencida essa
primeira batalha, passa-se ao que se fará até a alta: interpreta-se, vez que o nosso ofício é interpretar, pelo que, a nós tudo interessa: atitudes como a de
orientar o psicanalista, as frases, o tom de voz, as posturas, a pontualidade,
os atrasos de toda ordem, as roupas, perfumes, tudo! Tudo, mas com habilidade,
para não transformar a sessão num sarau, numa troca de opiniões, num momento de
desfrute, num encontro prazeroso, já que Psicanálise é trabalho, trabalho de
garimpagem de tudo o mais que nos sirva de indicadores, para se chegar à
patologia, que sempre será diferente da definida
pelo paciente, que será a ele apresentada, não por meio de palavras, mas de
descobertas feitas por ele mesmo, em função de um processo a que chamamos de chegar ao insight.
*Uma forma
muito proveitosa de se começar uma análise é, desde os primeiros momentos,
formular-se perguntas que levem o paciente a uma introspecção, ma com respostas
que não se limitem a um sim ou a um não. Este tipo de abordagem tem a
vantagem de trazer, ao paciente, a idéia
de prosseguimento no tratamento, vez que a introspecção o leva a
focalizar-se no meio em que vive e a ver-se agindo e reagindo. Para tanto, não
nos é lícito cobrar respostas ricas e
sim formular-se perguntas que gerem
respostas esclarecedoras. A propósito, nunca nos esqueçamos que todo
paciente tem, durante quase todo o tempo, apenas um assunto: as pessoas com
quem se relaciona, ou aquelas com quem deixou de se relacionar, daí a
importância de levá-lo ao foco em si mesmo, que é o princípio do
auto-conhecimento, no Nosce te ispum,
cujo vislumbre, via de regra, é decisivo para a opção da psicanálise.
*No tópico
anterior falamos de uma forma proveitosa
de se começar uma análise, pelo que, convém que se diga que podemos dividir
a psicanálise em três momentos: o do início,
o do meio e o do término. O inicial é aquele em que as nossas interpretações, provindas das
questões introspectivas, despertam no paciente cogitação a acerca do como será na próxima sessão? É a
instalação de um processo que pode ser chamado de processo da continuidade da psicanálise, que é filho da
introspecção. O do meio é marcado
pelo surgimento da transferência,
muito especialmente, quando o analista é o alvo do fenômeno. O momento do término, é aquele em que se evidenciam
marcantes alterações indicadoras de cura, referida à queixa inicial. É um
momento que quase nunca é comemorado
pelo paciente, fez que ele simultaneamente à consolidação da cura, começa,
ainda que inconscientemente, a viver um quadro
de separação. É aí que se recapitula a patologia identificada e todo o
trabalho em que ambos se empenharam para neutralizá-la, confirmando-se,
destarte, a cura.
*Há algo que
se quer, nesta obra, deixar-se bem nítido nas mentes dos Colegas em formação: é
o fato de exigir a Psicanálise, da parte do analista, atenção, muita atenção,
especialmente quando está ouvindo no seu consultório, mas fazendo-o de tal
forma, que não impeça que suas próprias fantasias e lembranças fluam livremente
enquanto ouve, sem deixar, entretanto, de examinar cuidadosamente, à luz dos
seus conhecimentos teóricos, todo o material produzido, antes de transmitir ao
paciente as suas interpretações. É neste ponto que aparece mais um cuidado a
ser observado: se é verdade que se deve
ter uma mente treinada, plena de conhecimentos teóricos, é também verdade, que
um bom psicanalista será aquele que souber, com senso de oportunidade,
emoldurar a técnica com empatia intuição.
*Sobre
empatia, transcreve-se para cá, um comentário de Ralph Greenson:
A capacidade para a empatia é fundamental
para uma boa disposição psicológica e depende da capacidade para uma
identificação parcial e temporária com outros. Ele é necessária para uma
comunicação eficaz entre paciente e analista e deve estar presente em ambos. As pessoas
retraídas e emocionalmente desinteressadas não são boas candidatas à prática
psicanalítica.
*A esta altura
cabe uma observação: não se quer, com os comentários esquemáticos acima
apresentados, passar para o colega em formação uma imagem de simplicidade da
Psicanálise, pois isso seria uma leviandade, pois a psicanálise, conquanto seja
chamada de ciência tanto por Freud, quanto por Nunberg e outros da estatura de
ambos, é ela, incontestavelmente, uma arte
e exatamente por ser arte, deparamo-nos, a todo momento, com graves
dificuldades, já que nela influem fatores mais ou menos subjetivos do tipo
acuidade mental, universalidade de conhecimentos, graus de sensibilidade,
rapidez de raciocínio e outros não mensuráveis, mas que, na verdade, são
determinantes de grandes diferenças nos resultados que se deseje alcançar.
Seria mesmo uma leviandade, pois o que
quer que esteja a produzir uma doença (do tipo que aparece nos nossos
consultórios), é psíquico e absolutamente inconsciente, frase essa de
Herman Nunberr, que com a sua autoridade, nos diz o quanto de
surpreendentemente difícil, existe no ato de psicanalisar.
*Ainda
aprendendo com Nunberg, é conveniente que se diga que, na prática
psicanalítica, lidamos com o que não
temos e isso é rigorosamente verdadeiro, vez que, na memória humana se
formam lacunas onde tenha ocorrido algo de importante na vida do paciente,
lacunas que se estendem até as fases mais precoces da infância. E a esse
cenário cheio de descontinuidades, somam-se algumas lembranças que podem surgir
aleatoriamente, sem qualquer ligação com o discurso do paciente, mas que, na
verdade, são peças de um material que escaparam do inconsciente e que, como
tal, se encaixarão, em algum momento, no quadro do grande quebra-cabeças em que
cada paciente se constitui.
*A propósito
de lacunas, Maud Manoni, no seu A primeira Entrevista em Psicanálise, nos diz
algo muito que sendo delicado, é útil por ser judicioso com definição de
neurose:
Nem todas as crianças conseguem se lembrar
de tudo o que lhes aconteceu. É no perder as lembranças que podem surgir as
neuroses.
*A cautela que
transparece no conceito de Manoni se justifica, se atentarmos para um outro
aspecto que nos é trazido por Nunberg:
A memória das experiências ligadas à doença
pode estar preservada e consciente, enquanto que as conexões dessa experiência
com o sintoma e portanto, também, o seu significado, permanecem inconscientes.
*E falando-se
de conexões, é bom que tragamos a figura que Otto Fenichel usou para explicar o
nosso ofício: comparou-nos, nós os psicanalistas, a bombeiros hidráulicos, já
que ao seu ver, somos nós os encarregados de restabelecer conexões
interrompidas... Para tanto é preciso arte, muita arte.
*Se há algo
que é muito importante quando do exercício da Psicanálise, é uma visão
responsável que leve o profissional, tanto o iniciante quanto o experimentado,
a preparar-se para receber cada paciente, pois será o caso que em se tendo dois caracteres orais na agenda, ainda
assim, a sintomatologia neurótica de cada um será fatalmente diversa.
*Há autores
sérios, que sempre se referem às dificuldades do psicanalisar. Um deles é Jung,
um mestre de Psicanálise que se tornou uma espécie de irmão separado, que ao
falar das reações exteriorizadas pelos críticos alemães acerca da análise dos
sonhos, nos deixou dito:
Mas não houve um psicólogo, neurologista ou
psiquiatra que se tivesse dado ao trabalho de pôr à prova a sua acuidade mental
na análise dos sonhos de Freud? Ou não tiveram coragem? Estou quase acreditando
que ninguém teve coragem de fazê-lo, porque é realmente difícil, a meu ver,
quanto ao aspecto intelectual e muito difícil sob o aspecto das resistências
pessoais subjetivas. E é neste ponto que
a Psicanálise exige (...) um impiedoso auto-conhecimento. É preciso
repetir sempre e de novo, que a compreensão teórica e prática da Psicanálise é
uma função do auto-conhecimento analítico. Onde falta auto-conhecimento também
não floresce a Psicanálise.
*Voltemos a
Ralph Greenson para ouvi-lo a cerca do que se exige do psicanalista para
compreender o Inconsciente, e consideremos o quanto de dificuldade há no que
ele propõe como ideal:
A aptidão mais importante que o
Psicanalista deve possuir é a sua habilidade para relacionar os pensamentos,
sentimentos, fantasias e impulsos conscientes do paciente, com os seus
antecedentes inconscientes. Deve ser capaz de sentir o que há por detrás dos
vários assuntos de que fala o paciente no transcorrer da sessão. Algo como escutar a melodia e os temas da mão esquerda,
o contraponto, ou o que é inconsciente. Ele há que reparar nos quadros
fragmentados que o paciente pinta, sendo capaz de neles ver o modelo
inconsciente original.
No tópico
acima há muito de empatia e intuição.
Segundo Greenson, empatia é uma
função do Ego vivenciador, enquanto que a intuição
é função do Ego observador. A empatia e a intuição são as bases do talento
para agarrar os significados
inconscientes por detrás do material inconsciente. Por isso mesmo, os
psicanalistas hão que ter um bom estoque
de ambas. A capacidade para a empatia é um requisito básico, vez que sem
ela torna-se quase impossível desenvolver-se qualquer terapia eficiente de
desvendamento. Já a capacidade para a intuição contribui para o exercício da
sagacidade, mas que sem a empatia, será ilusória e por isso mesmo não
confiável.
*Até agora
falou-se com mais ênfase sobre aptidões, mas não se pode esquecer que o
conhecimento teórico é o terceiro termo do trinômio, já que se encarrega de
verificar dados, de contabilizar as evidências, de encontrar o significado do
achado pela empatia, ou pela intuição, já que
“o conhecimento teórico é, na verdade, um
precipitado e um destilado de milhares de fatos clínicos e deve ser usado para
o trabalho clínico se quisermos evitar o perigo de fazer psicanálise selvagem.
A empatia e a intuição não podem ser ensinadas, mas um cientista tem que
aprender o que é ensinável: o conhecimento teórico não é barreira pra terapia
intuitiva, pelo contrário, é um pré-requisito indispensável”.
(Ralph
Greenson se fundamentando em Sharpe e Fenichel. Ibidem, p.412).
*Freud, num
rompante,nos fala das dificuldades do exercício da psicanálise, no seu Análise
Terminável e Interminável (Imago, 1975), chamando de impossível a nossa profissão, alinhando o analisar ao lado de educar
e governar, já que as três
atividades requerem dedicação, intuição, empatia, auto-controle, capacidade de
julgamento, prontidão de espírito etc., isso tudo unicamente porque Psicanálise é uma arte.