Os Sete Pecados Capitais
Parte I
os sete pecados
capitais se relacionam com as doenças mentais — cristianismo e psicanálise têm
vários pontos de convergência — para a psicanálise também são importantes o
respeito e a disciplina — o prazer não pode ser considerado um pecado
Psicanálise e religião
Cristãos e não-cristãos, todos
nós fomos, de alguma maneira, influenciados pelos ensinamentos de Cristo. Todavia,
não é minha intenção discutir o seu sentido místico e religioso. Não estou
sequer qualificado para tanto. Não sou teólogo, sou psicanalista. Discutirei,
portanto, os aspectos psicológicos da doutrina de Cristo. Discutirei, à luz da
psicanálise, o sentido de pecado e de salvação. Abordarei um por um os sete
pecados capitais e tentarei demonstrar como são os responsáveis por todas as doenças mentais. Este não
será, portanto,
um capítulo cristão, no sentido religioso do termo. Será cristão, no sentido
ético. Melhor dizendo, no sentido que consigo entender como sendo ético e
cristão.
Os sete pecados
capitais não estão descritos como tais nem no Velho nem no Novo Testamento.
Logo, não estão relacionados na Bíblia. Na forma como chegaram até nós, foram
catalogados na Idade Média, que aliás tinha mania de catalogar tudo.
Representam uma leitura, uma interpretação feita pelos cristãos a partir da
Bíblia como um todo. Não fazem parte das Escrituras. Fazem parte, isto sim, da
tradição e da doutrina cristã.
Os sete pecados
capitais são: gula, ira, inveja, preguiça, orgulho, avareza e luxúria. Gula não se
confunde com fome, com apetite, com vontade de comer. Ira não se confunde com o
natural sentimento de raiva ou de indignação. Inveja não se confunde com
admiração nem com o desejo de ser como alguém e sofrer por não sê-lo. Preguiça
não se confunde com necessidade de repouso, prazer de não fazer nada, vontade
de ficar em paz, de dormir ou espreguiçar. Orgulho
não se confunde com auto-estima, galhardia, sentimento de honra ou dignidade
pessoal. Avareza não se confunde com previdência, parcimônia ou sensatez. Luxúria não se confunde
com sensualidade, atração física de corpos e almas, prazeres da carne.
Logo, o
cristianismo não é contra o desejo, a agressividade, o sexo, o descanso ou o
prazer. É contra o desejo desenfreado, exagerado, insaciável, que na realidade
atrapalha os outros desejos e compromete a vida como um todo. Não é à toa que
as virtudes cardeais são temperança, prudência, bondade, justiça, fé,
esperança e caridade.
Utilizando uma terminologia
psicanalítica, eu entenderia
a
virtude como aquele jeito de viver que nos torna mais sadios, mais capazes de
crescer emocionalmente e, portanto, de nos tornarmos mais felizes, mais
realizados. E entenderia pecado como
aquelas atitudes de cabeça que fazem as pessoas se sentirem perdidas,
angustiadas e infeli-zes. Por pecado eu entenderia aquele
jeito de pensar, de sentir e de agir que leva ou ao empobrecimento da personalidade
(cabeças empobrecidas e corações mediocrizados) ou à doença mental (neurose,
psicose, etc.).
É óbio que,
quando aqui me refiro ao cristianismo, não estou
me referindo àquele cristianismo que
nos ensinaram na escola, cheio de preconceitos, enxergando pecado em tudo que
fosse gostoso, que representasse prazer ou liberdade. E óbvio que não estou me referindo ao cristianismo feito
para o consumo das massas, superficial e careta, ensinado por cristãos bem
intencionados, mas despreparados, cristianismo de catecismo ou almanaque. Esse
cristianismo tem muito pouco a ver com a psicanálise. Não passa de uma
caricatura puritana. Representa, aliás, exatamente a mesma coisa que a
psicanálise tal como costuma ser divulgada — tudo se reduzindo ao desejo do
filho de querer a mãe e de matar o pai, a traumas de infância ou a uma
equivocadíssima idéia de que se deve deixar a criança fazer tudo o que quer. Um
misto de tara com delinqüência e mimo. Um misto de sexomania, libertinagem e
falta de respeito. Decididamente, psicanálise não é isso.
O que vou dizer,
portanto, não tem nada a ver nem com o cristianismo nem com a psicanálise de
almanaque. Tem a ver, isso sim, com uma leitura mais profunda do que seja a
maneira cristã e a maneira psicanalítica de enxergar a alma humana. É aí que
cristianismo e psicanálise têm vários pontos de convergência.
Aliás, o que
significa a palavra “religião”? Religião significa religar, ligar de novo. Ou
seja, redescobrir o nexo das coisas, não deixar nosso pensamento se perder e se
consumir numa eterna confusão. Como a vida é sempre maior do que nossa
capacidade de compreendê-la, algo que nos ajude a estabelecer a ligação entre
as coisas é sempre bom. A perdição não é ter pensamentos sexuais. É, isso sim,
estar à deriva, como uma nau sem rumo, ou como uma nau com rumo equivocado. A
cabeça imagina que encontrou seus objetivos, mas, na
realidade, está desnorteada, não sabe o que quer, para onde vai, nem por que
faz as coisas que faz. E doença mental é isso: é estar à deriva, levado por
impulsos e obsessões, ou perdido dos outros e de si mesmo. Um labirinto de
desejos e emoções dentro do qual, na realidade, não nos encontramos.