Este artigo foi dividido em duas partes divido ao seu conteúdo
Castilho sanhudo
II Parte
Entre as preciosidades encontradas na biblioteca da Sociedade Sigmund Freud está essa entrevista. Foi concedida ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926. Deve ter sido publicada na imprensa americana da época. Acreditava-se que estivesse perdida, quando o Boletim da Sigmund Freud Haus publicou uma versão condensada, em 1976. Na verdade, o texto integral havia sido publicado no volume Psychoanalysis and the Future, número especial do "Journal of Psychology", de Nova Iorque, em 1957. É esse texto que aqui reproduzimos, provavelmente pela primeira vez em português.
TRADUÇÃO DE PAULO CÉSAR SOUZA
Compreendi subitamente porque Freud havia litigado
com os seguidores que o haviam abandonado, porque ele não perdoa a sua
dissensão do caminho reto da ortodoxia psicanalítica. Seu senso do que é
direito é herança dos seus ancestrais. Uma herança de que ele se orgulha como
se orgulha de sua raça.
- Minha
língua é o alemão. Minha cultura, minha realização é alemã. Eu me considero um
intelectual alemão, até perceber o crescimento do preconceito anti-semita na
Alemanha e na Áustria. Desde então prefiro me considerar judeu.
Fiquei algo desapontado com esta observação. Parecia-me
que o espírito de Freud deveria habitar nas alturas, além de qualquer
preconceito de raça, que ele deveria ser imune a qualquer rancor pessoal. No
entanto, precisamente a sua indignação, a sua honesta ira, tornava-o mais
atraente como ser humano. Aquiles seria intolerável, não fosse por seu
calcanhar!
- Fico
contente, Herr Professor, de que também o senhor tenha seus complexos, de que
também o senhor demonstre que é um mortal!
- Nossos complexos são a fonte de
nossa fraqueza; mas, com freqüência, são também a fonte de nossa força.
-
Imagino, observei, quais seriam os meus complexos!
- Uma análise séria dura ao menos
um ano. Pode durar mesmo dois ou três anos. Você está dedicando muitos anos de
sua vida à "caça aos leões". Você procurou sempre as pessoas de
destaque para a sua geração: Roosevelt, o Imperador, Hindenburg, Briand, Foch,
Joffre, Georg Brandes , Gerhart Hauptamann e George Bernard Shaw...
- É parte
do meu trabalho.
- Mas é também sua preferência. O
grande homem é um símbolo. A sua busca é a busca do seu coração. Você está
procurando o grande homem para tomar o lugar do seu pai. É parte do seu
"complexo do pai".
Neguei veementemente a afirmação de Freud. No
entanto, refletindo sobre isso, parece-me que pode haver uma verdade, ainda não
suspeitada por mim, em sua sugestão casual. Pode ser o mesmo impulso que me
levou a ele.
-
Gostaria, observei após um momento, de poder ficar aqui o bastante para
vislumbrar o meu coração através do seus olhos. Talvez, como a Medusa, eu
morresse de pavor ao ver minha própria imagem! Entretanto, receio ser muito
informando sobre a psicanálise. Eu freqüentemente anteciparia, ou tentaria
antecipar suas intenções.
- A
inteligência num paciente não é um empecilho. Pelo contrário, às vezes facilita
o trabalho.
Neste ponto o mestre da psicanálise diverge de
muitos dos seus seguidores, que não gostam de excessiva segurança do paciente
sob o seu escrutínio.
- Ás vezes imagino, questionei, se
não seríamos mais felizes se soubéssemos menos dos processos que dão forma a
nossos pensamentos e emoções. A psicanálise rouba a vida do seu último encanto,
ao relacionar cada sentimento ao seu original grupo de complexos. Não nos
tornamos mais alegres descobrindo que nós todos abrigamos o criminoso e o
animal.
- Que objeção pode haver contra os
animais? Eu prefiro a companhia dos animais à companhia humana.
- Por
que?
- Porque
são tão mais simples. Não sofrem de uma personalidade dividida, da
desintegração do ego, que resulta da tentativa do homem de adaptar-se a padrões
de civilização demasiado elevados para o seu mecanismo intelectual e psíquico.
O selvagem, como o animal, é cruel, mas não tem a maldade do homem civilizado.
A maldade é a vingança do homem contra a sociedade, pelas restrições que ela
impõe. As mais desagradáveis características do homem são geradas por esse
ajustamento precário a uma civilização complicada. É o resultado do conflito
entre nossos instintos e nossa cultura. Muito mais agradáveis são as emoções
simples e diretas de um cão, ao balançar a cauda, ou ao latir expressando seu
desprazer. As emoções do cão, acrescentou Freud pensativamente, lembram-nos os
heróis da Antigüidade. Talvez seja essa a razão por que inconscientemente damos
aos nossos cães nomes de heróis antigos como Aquiles e Heitor.
- Meu
cachorro, disse eu, é um Doberman Pinscher chamado Ajax.
Freud sorriu.
-
Fico contente de que não possa ler. Ele certamente seria um membro menos
querido da casa, se pudesse latir sua opinião sobre os traumas psíquicos e o
complexo de Édipo!
- Mesmo o
senhor, Professor, sonha a existência complexa demais. No entanto, parece-me
que o senhor seja em parte responsável pelas complexidades da civilização
moderna. Antes que o senhor inventasse a psicanálise, não sabíamos que nossa
personalidade é dominada por uma hoste beligerante de complexos muito
questionáveis. A psicanálise fez da vida um quebra-cabeças complicado.
- De
maneira alguma, respondeu Freud. A psicanálise torna a vida mais simples. Adquirimos
uma nova síntese depois da análise. A psicanálise reordena um emaranhado de
impulsos dispersos, procura enrolá-los em torno do seu carretel. Ou,
modificando a metáfora, ela fornece o fio que conduz a pessoa fora do labirinto
do seu inconsciente.
- Ao menos na superfície, porém, a
vida humana nunca foi mais complexa. E a cada dia alguma nova idéia proposta
pelo senhor ou por seus discípulos torna o problema da condução humana mais
intrigante e mais contraditório.
- A psicanálise, pelo menos, jamais
fecha a porta a uma nova verdade.
- Alguns dos seus discípulos, mais
ortodoxos do que o senhor, apegam-se a cada pronunciamento que sai da sua boca.
- A vida
muda. A psicanálise também muda, observou Freud. Estava apenas no começo de uma
nova ciência.
- A estrutura científica que o
senhor ergueu me parece ser muito elaborada. Seus fundamentos - a teoria do
"deslocamento", da "sexualidade infantil", do
"simbolismo dos sonhos", etc. - parecem permanentes.
- Eu repito, porém, que nós
estamos apenas no início. Eu sou apenas um iniciador. Consegui desencavar
monumentos soterrados nos substratos da mente. Mas ali onde eu descobri alguns
templos, outros poderão descobrir continentes.
- O
senhor ainda coloca a ênfase sobretudo no sexo?
-
Respondo com as palavras do seu próprio poeta, Walt Whitman: "Mas tudo
faltaria, se faltasse o sexo" ("Yet all were lacking, if sex were
lacking"). Entretanto, já lhe expliquei que agora coloco ênfase quase
igual naquilo que está "além" do prazer - a morte, a negociação da
vida. Este desejo explica por que alguns homens amam a dor - como um passo para
o aniquilamento! Explica por que todos buscam o descanso, porque os poetas
agradecem a Whatever gods there be, That no life lives forever. That dead men rise up never And even the weariest river Winds somewhere
safe to sea. ("Quaisquer deuses que existam/ Que a vida
nenhuma viva para sempre/ Que os mortos jamais se levantem/ E também o rio mais
cansado / Deságüe tranqüilo no mar".)
- Shaw, como o senhor, não deseja
viver para sempre, mas à diferença do senhor, ele considera o sexo
desinteressante.
- Shaw,
respondeu Freud sorrindo, não compreende o sexo. Ele não tem a mais remota
concepção do amor. Não há um verdadeiro caso amoroso em nenhuma de suas peças.
Ele faz brincadeira do amor de Júlio César - talvez a maior paixão da História.
Deliberadamente, talvez maliciosamente, ele despe Cleópatra de toda grandeza,
reduzindo-a uma insignificante garota. A razão para a estranha atitude de Shaw
diante do amor, para a sua negação do móvel de todas as coisas humanas, que
tira de suas peças o apelo universal, apesar do seu enorme alcance intelectual,
é inerente à sua psicologia. Em um de seus prefácios, ele mesmo enfatiza o
traço ascético do seu temperamento. Eu posso ter errado em muitas coisas, mas
estou certo de que não errei ao enfatizar a importância do instinto sexual. Por
ser tão forte, ele se choca sempre com as convenções e salvaguardas da
civilização. A humanidade, em uma espécie de autodefesa, procura negar sua
importância. Se você arranhar um russo, diz o provérbio, aparece o tártaro sob
a pele. Analise qualquer emoção humana, não importa quão distante esteja da
esfera da sexualidade, e você certamente encontrará esse impulso primordial, ao
qual a própria vida deve a perpetuação.
- O senhor,
sem dúvida, foi bem sucedido em transmitir esse ponto de vista aos escritores
modernos. A psicanálise deu novas intensidades à literatura.
- Também recebeu muito da
literatura e da filosofia. Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas. É
surpreendente até que ponto a sua intuição prenuncia as novas descobertas.
Ninguém se apercebeu mais profundamente dos motivos duais da conduta humana, e
da insistência do princípio do prazer em predominar indefinidamente. O de
Zaratustra diz: "A dor Grita: / Vai! Mas o prazer quer eternidade / Pura,
profundamente eternidade". A psicanálise pode ser menos amplamente
discutida na Áustria e na Alemanha do que nos Estados Unidos, a sua influência
na literatura é imensa, porém. Thomas Mann e Hugo von Hofmannsthak muito devem
a nós. Schnitzler percorre uma via que é, em larga medida, paralela ao meu
próprio desenvolvimento. Ele expressa poeticamente o que eu tento comunicar
cientificamente. Mas o Dr. Schnitzler não é apenas um poeta, é também um
cientista.
- O
senhor, repliquei, não é apenas um cientista, mas também um poeta. A
literatura americana está impregnada da psicanálise. Hupert Hughes, Harvrey
O'Higgins e outros fazem-se de seus intérpretes. É quase impossível abrir um
novo romance sem encontrar referência à psicanálise. Entre os dramaturgos,
Eugene O'Neill e Sydney Howard têm profunda dívida para com o senhor. The
Silver Cord, por exemplo, é simplesmente uma dramatização do complexo de
Édipo.
- Eu sei,
replicou Freud, e aprecio o cumprimento que há nessa constatação. Mas tenho
receio da minha popularidade nos Estados Unidos. O interesse americano pela
psicanálise não se aprofunda. A popularização leva à aceitação superficial sem
estudo sério. As pessoas apenas repetem as frases que aprendem no teatro ou na
imprensa. Pensam compreender algo da psicanálise porque brincam com seu jargão!
Eu prefiro a ocupação intensa com a psicanálise, tal como ocorre nos centros
europeus. A América foi o primeiro país a reconhecer-me oficialmente. A Clark
University concedeu-me um diploma honorário quando eu ainda era ignorado na
Europa. Entretanto, a América fez poucas contribuições originais à psicanálise.
Os americanos são divulgadores inteligentes, raramente são pensadores
criativos. Os médicos nos Estados Unidos, e ocasionalmente também na Europa,
procuram monopolizar para si a psicanálise. Mas seria um perigo para a
psicanálise deixá-la exclusivamente nas mãos dos médicos, pois uma formação
estritamente médica é, com freqüência, um empecilho para o psicanalista. É
sempre um empecilho, quando certas concepções científicas tradicionais ficam
arraigadas no cérebro do estudioso.
Freud tem que dizer a verdade a qualquer preço! Ele
não pode obrigar a si mesmo a agradar a América, onde está a maioria de seus
admiradores. Apesar da sua intransigente integridade, Freud é a urbanidade em
pessoa. Ele ouve pacientemente cada intervenção, não procurando jamais
intimidar o entrevistador. Raro é o visitante que deixa sua presença sem algum
presente, algum sinal de hospitalidade!
Havia escurecido. Era tempo de eu tomar o trem de volta à cidade que uma vez
abrigara o esplendor imperial dos Habsburgos.
Acompanhado da esposa e da filha, Freud desceu os
degraus que levavam do seu refúgio na montanha à rua, para me ver partir. Ele
me pareceu cansado e triste, ao dar o seu adeus.
- Não me faça parecer um
pessimista, ele disse após o aperto de mão. Eu não tenho desprezo pelo mundo.
Expressar desdém pelo mundo é apenas outra forma de cortejá-lo, de ganhar
audiência e aplauso. Não, eu não sou um pessimista, não, enquanto tiver meus
filhos, minha mulher e minhas flores! Não sou infeliz - ao menos não mais
infeliz que os outros.
O apito de meu trem soou na noite. O automóvel me
conduzia rapidamente para a estação. Aos poucos o vulto ligeiramente curvado e
a cabeça grisalha de Sigmund Freud desapareceram na distância.