INSTITUTO FREIDIANO DE ESTUDOS PSICANALÍTICOS

sexta-feira, 4 de abril de 2014

No terceiro capítulo do Totem e tabu

CURSO LIVRE DE CAPACITAÇÃO EM PSICANÁLISE
PORTO ALEGRE - TURMA IX
INICIO EM 25 DE ABRIL
No terceiro capítulo do Totem e tabu (1913/1986a), Freud postula um estado mágico de percepção no qual o homem primitivo projetava seus movimentos no mundo, instaurando o único sistema de pensamento, o animista. No entanto, com a vinculação às palavras pelo outro, adquiriu- se a percepção interna das próprias imagens de movimento. Ferenczi, no mesmo ano, segue Freud no artigo sobre o desenvolvimento do conceito da realidade, em que encontra, no bebê, a passagem do estado animista para o do efeito mágico de palavras que prepara o caminho para a percepção das realidades externa e interna.
Vamos deixar de lado a complexa diferenciação seqüencial das imagens de movimentos em afetos e pensamento para voltarmos aos poderes da palavra. Vimos que o acesso às representações-coisa de imagens de movimento de si se torna possível pela sua conexão com as imagens de movimento das palavras, proporcionadas pelo trabalho de identificação do objeto. Porém, do que são feitas as imagens de movimento, de palavras ou coisas? Qual é seu substrato? São as urgências vitais e sua pulsação que constituem sua matéria-prima, gerando dor pela ligação que têm com o corpo. A pulsão, entretanto, tende a se satisfazer pela “alucinação”, ou sua pulsação equivale à satisfação pela alucinação – modo de funcionamento primitivo da psique (Freud, 1895/1995). A alucinação é ato, carregando no interior de sua realização a potência figurativa (Darstellbarkeit). A alucinação se imanta, de início (como na citação acima de Freud), pela “hostilidade” em função da fuga da insuportável dor, ao mesmo tempo que busca satisfação. É o trabalho do objeto que permite ligar a dor para instaurar, no próprio substrato alucinatório, trajetos, derivados de imagens de movimento estabelecidas no intervalo dos corpos. No Totem e tabu (1913/1986a), Freud demonstra, ao comparar o neurótico obsessivo com o homem primitivo, o poder mágico e alucinatório das palavras. A palavra carrega consigo todo o poder de “contágio”, próprio da pulsão sexual do desejo incestuoso e do vislumbre de retaliação do pai morto da tribo, a ponto de essa proibir a enunciação do nome do morto e obrigar a mudança do nome dos sobreviventes com o mesmo nome. As palavras em seus afãs alucinatórios, oriundos da pulsão, são atos – atos moldados (mediante a dor) pelo objeto e obtendo registro para passar a constituir o universo dos pensamentos. Essa é a aquisição da cultura, como ressalta Freud em seu Moisés, de 1938.
Existe, todavia, a questão de como a palavra passou a se encarregar da função da percepção interna (ver acima). A semelhança entre o estado dormente e o morto, assim como entre o sonho e os movimentos na vida da vigília, faz pensar que o espírito do morto é oculto e pode “reaparecer” (vingar), do mesmo modo que o dormente pode acordar, agir. “Raciocínio primitivo” (Freud, 1913/1986a) que releva a ambivalência afetiva originária em relação ao pai. O assassinato, como a percepção de um desejo, assunção de um movimento próprio, foi uma concessão narcísica na história, em que o sujeito assumiu a solidão do “ato daExiste, todavia, a questão de como a palavra passou a se encarregar da função da percepção interna (ver acima). A semelhança entre o estado dormente e o morto, assim como entre o sonho e os movimentos na vida da vigília, faz pensar que o espírito do morto é oculto e pode “reaparecer” (vingar), do mesmo modo que o dormente pode acordar, agir. “Raciocínio primitivo” (Freud, 1913/1986a) que releva a ambivalência afetiva originária em relação ao pai. O assassinato, como a percepção de um desejo, assunção de um movimento próprio, foi uma concessão narcísica na história, em que o sujeito assumiu a solidão do “ato da palavra”, do desejo ante “o silêncio” da morte do pai – momento em que a palavra veio ao mundo (Freud, 1913/1986a).4
Adentrar a cultura significa, então, situar-se no mundo de sujeitos, cuja convivência é regida pela castração, um limite possível de se atingir somente por um ato histórico, fruto do desejo de assassinato do pai primevo. O assassino, diz Freud, em 1921, é o filho caçula e preferido da mãe, encorajado a matar o pai e, assim, se tornar “o poeta”, pois traz as palavras aos homens, instituindo com elas uma nova ordem, não mais a do pai perverso e onipotente, mas a de divisão dos bens do mundo entre todos. O ato da palavra remonta, na história, ao assassinato.No início, conclui Freud, em 1913, era o ato.
Para concluir, vemos como as perplexidades iniciais de Freud, de 1890, em relação aos poderes da palavra, acabam sendo resolvidas no decorrer de sua longa trajetória. A criação de imagens de palavras e sua relação com as representações- coisa se dão junto ao outro. Trata-se da criação de uma trajetória singular ramificada que é revista diariamente com os outros, mas que pode ser examinada em uma análise, em que o poder das palavras do analista, assim como o do paciente, deve respeitar os limites e as possibilidades impostas pelas trajetórias singulares em que construíram as relações entre palavras e coisas junto a uns outros um tanto singulares. Como exemplo corriqueiro desse trabalho da análise, trago um conhecido fragmento: um paciente entra em nossa sala. O modo com que respira e o seu aspecto facial agonizante nos fazem suspeitar de uma angústia.Ao deitar, perguntamos: “Angustiado?”.Uma só palavra, que traz alívio e desperta a fala. A angústia, assim como a sua fonte de dor, é desprovida de tempo ou este é parado ou infinito. Ao fornecermos uma imagem, um sentido, o tempo volta a escoar, ligando as palavras às coisas. No artigo de 1924 (Freud, 1924/1991c) sobre o masoquismo, Freud aponta o surgimento das qualidades, das imagens, a partir da pulsação. O tempo e a consciência se devem a uma “contenção” que permite um dar forma, como se ligando em imagem os picos das ondas da pulsão. Um sentido na imagem que traz à tona o tempo, as “notícias de si” (Freud, 1895/1995).
Falar e/ou escutar é “quase” tudo: é dar um livre curso ao poder alucinatório das palavras para encontrarem no corpo, mediante a dor, e com o outro, os próprios limites, as próprias formas, de sua realização.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Palavra e seus poderes em Freud


Daniel Delouya
Carrego meus primórdios num andor. 
Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas urinam na perna...

Manoel de Barros (1996),
“Você vai lá só para isso, só para falar?! Fale comigo, e faço isso (brincando) por um terço do preço de seu analista.” Comentário, surpresa e risos de leigos que ainda ressoam nos ambientes sociais de nosso tempo. “O leigo teria, certamente, dificuldades em entender como é possível eliminar distúrbios da mente e do corpo ‘tão-somente’ pelas palavras do médico” (Freud, 1890/2002). “Quer que eu acredite em mágica?”, pergunta, atônito, o leigo de Freud. O leigo adivinhou, afirma Freud, pois as palavras de nosso cotidiano “não são outra coisa senão um feitiço que perdeu a sua eficácia”. Um “tratamento psíquico, tratamento da alma” (título desse artigo de 1890) consiste, justamente, em afetar a alma por meio de palavras, desde que a elas se devolva o seu poder originário de feitiço.
Nenhum de nós, pacientes e analistas experientes, escapa da surpresa desse poder mágico das palavras ao serem proferidas seja por nós, seja pelo outro.Um efeito que logo se esvai por detrás da consciência empírica do senso comum da vida da vigília. Episódios como “Falei coisas que jamais pensei em dizer” ou “O que você falou me tocou de tal modo” têm um efeito, por vezes, drástico e determinante para manter a análise em curso, ou outra relação qualquer. A mesma surpresa reemerge, do lado da analista, quando se dá conta do efeito de uma palavra que emitiu. Ação mágica das palavras que é facilmente detectável em crianças quando contestam com veemência – “Mas a minha mãe falou!” –, ou no adolescente – “Ela falou e com isso quebrou minhas pernas” –, sem esquecer que uma palavra do amante, ou do chefe, pode tanto transformar nosso estado de mente como levar alguns a loucura e outros ao suicídio.
Todo o esforço da nova ciência, segundo Freud, consiste em devolver às palavras o seu poder mágico. E esse poder, continua ele, se origina na psique, na alma. Não significa, necessariamente, que a alma é feita de palavras ou se estrutura como linguagem, como alguns diriam mais tarde, mas que talvez exista algo na alma que confira esse poder central às palavras. Cem anos mais tarde,André Green (1983) reforçou essa missão freudiana, com outras palavras, ao dizer que “cabe à análise tirar a palavra de seu luto”, desenlutá-la.
No referido artigo de Freud, o caminho que ele toma é o de mostrar o efeito hipnótico veiculado pela palavra. Porém, essa inferência é apressada e não o tranqüiliza, pois, de um lado, a eficácia da palavra, tal como a desenhamos acima, é atrelada a certa situação de transação intersubjetiva. Seria, então, o estado hipnótico o responsável por conferir a elas seu poder mágico e sugestivo? “Seria ótimo se assim fosse, mas a realidade é outra”, lamenta Freud. Os pacientes resistem, por conta de elementos singulares, ainda obscuros para ele. Por outro lado, a situação dessimétrica, entre o hipnotizador e o hipnotizado, acena a Freud a analogia preciosa desse efeito com o estado amoroso e passional, com a relação corriqueira entre médico e paciente, do líder com a multidão, e essas com a relação mãe-bebê durante a qual a primeira dispensa cuidados imprescindíveis ao último1.
Uma obscuridade, ou melhor, uma tensão se instaura quanto à origem do poder das palavras, entre a abertura dada pelo estado hipnótico e as singularidades do sujeito. A resistência deste e sua suscetibilidade às palavras logo ocuparão um lugar de destaque na técnica freudiana. Mas estamos ainda em 1890, quatro anos após a volta de Paris, e um ano após a visita feita a Bernheim em Nancy, onde Freud assiste à alucinação negativa do hipnotizado que coloca em relevo a resistência e os elementos singulares na sujeição às palavras do médico. Entretanto, estamos, também, em plena preparação de uma monografia sobre A concepção das afasias (1891/1987), relacionada com o posto que Freud ocupa desde sua volta de Paris no hospital de crianças com paralisias cerebrais.Nesse livro, ele utiliza material de pacientes afásicos de vários pesquisadores, como Broca, Wernike, Lichtheim, Bastian e, sobretudo, de Grashey, demolindo suas hipóteses sobre a localização anatômica das funções de linguagem e as vias de transação fisiológica entre esses centros, para resgatar uma natureza “unicamente psicológica” das palavras, sem descartar a existência de uma matriz biológica que a sustente. Contudo, as afasias descritas na literatura permitem-lhe dissecar a palavra nas imagens interligadas que a compõem e suas vias de conexão com as representações da coisa. Sabemos do poder dessa arquitetura para a metapsicologia freudiana e para seu entendimento das psicoses, mais de vinte anos depois, porém vale salientar, já neste momento histórico, a descoberta psicológica de haver “imagens” nas palavras, pois a imagem ressoa fortemente em qualquer magia, poder e efeito mágico. Nesse período, Freud está mergulhado no tratamento do sofrimento psíquico, e sua paciente Von Emmy, da qual ele cuida junto com Breuer desde 1887, é convocada à cena do livro de 1891, o que reforça a crença de muitos de que a construção do modelo nessa monografia é nutrida pela clínica dos “doentes dos nervos”.

Retornaremos a esse modelo mais tarde. Adiantamos que as palavras são dotadas, na trajetória freudiana, de uma espécie de aliança de natureza hipnótica, mágica e, por fim, alucinatória. Aqui, é preciso voltar à clínica. Muito cedo, em 1895, Freud nos fornece uma hipótese fascinante sobre a origem da linguagem, tomando partido do ataque histérico, concebido como figura da linguagem de um afeto (dificuldade de “engolir alguma coisa” = insulto; dor como se “apunhalado no coração” = menosprezo). Isso o levou a pensar numa fonte comum tanto à linguagem como ao afeto, cujo protótipo seria o ataque histérico: se o estado afetivo é gerado pela enervação motora e sua descarga, os sentimentos são a “percepção” (interna) e a figuração dessa enervação, ação e descarga no largo escopo das qualidades de prazer e desprazer. Apoiado em Darwin, o molde de tal inervação é a via reflexa – uma reação, a semelhança do ataque histérico, e a inscrição dessa experiência na pré-história da espécie, porque serviu à “preservação”. Munir-se da “expressão das emoções” (Darwin) foi o modo de defender-se de um perigo. De que modo? Justamente pela comoção do outro, pela “identificação” deste com a dor e a angústia do bebê perante o assalto dos estímulos objetais, sensoriais e pulsionais. Enervação, portanto, que é tributária de uma expressão corporal que comunica (emoção & linguagem), convocando o outro próximo e auxiliar (Nebenmensche). A “percepção” (linguagem & consciência) de afetos seria a apropriação dessa ação específica proporcionada pelo adulto. Vemos, então, por que Freud estipula no final do caso Elizabeth (1895/1974) uma origem comum à linguagem e aos afetos e por que encontra no estado de nascimento o protótipo da situação de perigo (desamparo) e da convocação do adulto como reiteração e modelo da história da espécie, em que a dor e a angústia dessa situação são as sementes das quais brotarão as emoções (1917, 1926).
continua...