Parte V
Gula
E óbvio que ninguém, em sã
consciência, vai considerar pecado, em terminologia cristã, ou causa de doença
mental, em terminologia psicanalítica, alguém ser bom de garfo, comer
gostosamente e, de vez em quando, cometer alguns excessos. Gula não é bem isso.
Isso é bom apetite, boa boca, garantida por um fígado melhor ainda.
Por gula a psicanálise
entende uma atitude de ter olhos maiores do que a barriga. É uma tentação à comilança, em
todos os sentidos do termo. Inclui a comida, mas inclui ainda outros tipos de
comida: a comida intelectual que alimenta nossa cabeça; a comida afetiva que
alimenta nossos corações; a comida sexual que alimenta nosso sexo; a comida
financeira que alimenta nossa conta bancária.
Gula não se limita, pois, a
extravagâncias culinárias. Existem muitos tipos de obesidades que não
impedem que as calças abotoem e que não aparecem nas balanças das farmácias.
Gula não tem também que ver com fome, desejo, apetite. Tem que ver, isso sim,
com voracidade e fissura. A pessoa dominada pelo demônio da gula é uma boca
enorme aberta para o mundo, uma goela larga, um estômago sem fundo, tudo isso
para saciar entranhas insaciáveis. Numa astrologia brasileira, num horóscopo
moreno, seria certamente do signo do porco, rato, polvo, vampiro ou tubarão.
O problema da gula é que ela
proporciona um permanente estado de frustração. Tudo que se recebe é pouco
para o tamanho da fome. Nada sacia ou desperta genuíno contentamento para o boca cósmica. No fundo, ele está numa desesperada
busca do ilimitado. Qualquer limite, ou barreira, é visto pela gula como
desamor, desconsideração, desinteresse. Assim, porque nunca se sacia, o guloso
jamais está contente e jamais pode sentir gratidão por
aquilo que recebe. Sua sina é demandar, é consumir. De preferência rapidinho,
para poder engolir mais. Perde,
pois, a capacidade de saborear a qualidade. Não diria que ele só deseja a
quantidade. Pode até desejar a qualidade, porém degusta caviar como se
estivesse faminto e abocanhando angu com bofe.
Isso se manifesta também com relação ao apetite de conhecimento. Não lê
livros. Devora-os. Não é à toa que recebe o nome de rato de biblioteca. O que
falta ao guloso certamente não é garra ou espírito de luta. É capacidade ou de
fina assimilação ou de sentir um genuíno prazer nas coisas que faz.
Até aí, tudo bem. O problema se dá é quando esse legítimo apetite de
conhecimento ultrapassa os limites do possível. Num primeiro momento, provoca o
impulso para a bisbilhotagem, para a espionagem. Contudo, indo mais além, alcança o suplício das
dúvidas ou incertezas. E, só porque não entende tudo, pode cair no abismo da
perplexidade ou da confusão. E poucas coisas doem tanto quanto a sensação de
ter perdido o fio da meada, o entendimento das coisas. A gente fica com a
nítida impressão de que está enlouquecendo.
A gula (se preferirem, a voracidade) pode, evidentemente, ser uma das
causas do alcoolismo e das toxicoma- nias. Uma sexualidade gulosa vai gerar a
ninfomania nas mulheres e a sexomania nos homens. Um amor guloso vai trazer uma
carência de tipo polvo, carrapato ou ainda o beijo da mulher-aranha. Uma
vaidade gulosa vai exigir uma busca desesperada de prestígios e glória, uma
luta frenética pelo poder. E o pior é que nada sacia. Tudo que se é ou se tem é
pouco. Assim, podem ocorrer poderosos complexos de inferioridade. Se todo
afeto é insufícente, se toda homenagem é pequena, sempre se está a um passo da
timidez e da insegurança.
A vida
de uma pessoa possuída pelo demônio da
gula pode tornar-se tão
infernal que é sempre forte a sua tentação de tirar o time, de sair desse mundo
e ingressar no mundo do sonho e da fantasia. Muitas esquizofrenias são causadas
por uma goela de tubarão.
Uma
pessoa com gula no coração tende ainda a enxergar o mundo como um covil de
esfomeados. Passa, por isso, a se sentir superexigida, alugada e explorada por
todo o mundo. Sai da terra dos homens e ingressa na terra dos vampiros. Por
todo canto, só enxerga chupa-sangue. Chupam-lhe a cabeça. Chupam-lhe o bolso.
Chupam-lhe o coração. Chupam-lhe até sua energia sexual. Vê dentes afiados por
toda a volta. Só lhe resta proteger suas carótidas
e jugulares.
Seu tempo é sempre curto para suas
necessidades. Está sempre atrasada, correndo contra o relógio e em dívida com sabe-se lá o quê. Tem uma culpa abstrata,
poderosa e crônica, de
que não está fazendo tudo o que devia. É cercada de incompetentes — ou seja, de
pessoas normais que evidentemente não podem fazer milagres.
Parte VI
Avareza
A avareza se dá quando a pessoa só
consegue enxergar o lado miúdo das coisas. Não tem gente que amesquinha todos
os nossos gestos, que só olha para os detalhes menores de nossas intenções? Às pessoas desse tipo falta, acima de
tudo, generosidade, grandeza. Estão sempre fissuradas no mesquinho, no detalhe,
no irrelevante, no banal. Quando ficam mais velhas, tornam-se avarentas e pães-duras. Ligam-se
desesperadamente em dinheiro. Não que dinheiro não tenha importância. É claro
que tem, principalmente para quem não o possui. É claro que dinheiro é vital.
Todavia, acima de certas quantias, deixa de ser tão importante. A partir daí,
apegar-se demasiado a ele já é não acreditar na força das capacidades humanas
para gerar aquilo que o dinheiro não pode comprar.
A história do avarento, contudo,
começa no berço. É aquele bebê que se interessa demais pelo tempo que os pais ficam com ele, pelo número
de brincadeiras que fazem ou de presentes que trazem. Sua resposta ao que lhe é
dado não é generosa ou estimulante. É econômica demais. Parece até que ele
considera suas emoções como feitas de ouro, capazes de acabar se forem gastas
com os outros. E é exatamente isso que sente. Ele é pão-duro de emoções. Como nunca as soltou,
não sabe do que emoções soltas são capazes. Nunca experimentou seus poderes e,
exatamente por isso, mais tarde vai se agarrar ao dinheiro.
Na
adolescência, é aquele jovem que jamais se entrega ou, pelo menos, jamais se
arrisca. Não prega prego sem estopa. Não arrisca emoções, desejos. Não arrisca
nem idéias. Daí até a cabeça do avarento ser miúda.
Uma pessoa
dominada pelo demônio da avareza está sempre se guardando para quando o carnaval chegar, só que,
para o avarento, o carnaval não chega nunca. Leva uma vida tão empobrecida que
pode se deprimir ou se desesperar com a baixa qualidade de sua existência — se
tiver generosidade para perceber isso. Várias depressões ou manias de perseguição
são causadas pela avareza.
Chega de avareza. Por que ser
pródigo com ela?
VII
Inveja
A inveja é considerada pela psicanálise uma das principais causas de todas
as doenças mentais. É evidente que não me refiro àquela humana torcida contra,
que em segredo sentimos por nossos rivais. Nem àquela humana alegria quando se
saem mal. Afinal, rival é para essas coisas, não é verdade? E sabemos que
sentem o mesmo por nós. Sequer me refiro àquela humilhação e àquele rancor que
secretamente se sente quando eles se saem melhor. Isso tudo faz parte da vida.
Não é sinal de doença. É sinal de saúde. Sinal de que somos gente, de carne e
osso, de que não temos sangue de barata e de que não somos de ferro. Tudo isso
está certo, até certo ponto. Eu diria mesmo que até um certo
ponto
bastante generoso e flexível. Pode-se sentir
inveja à vontade. E quem diz que não sente, não passa de um mentiroso ou, no
mínimo, de um reprimido. No entanto, a inveja tem limites, além dos quais ela
arruina a vida de qualquer um. Isso porque a inveja desperta, a todo momento, os
piores sentimentos. Acima de tudo, dominados pelo demônio da inveja, cedo ou tarde todos se
convertem em impiedosos rivais. Não existem mais
irmãos. Existem apenas competidores, em uma luta de vida e morte, da qual
só poderá sair um único vencedor.
A inveja — tal como a psicanálise descobriu — infiltra-se sorrateiramente
até em nossos relacionamentos mais enamorados.
Quanto melhor uma pessoa nos ame, quanto mais belas
forem suas emoções para conosco, mais sofre e
se humilha nosso lado invejoso. Por que ele me ama tão bem? Por que são tão
lindas as suas emoções? Espelho, espelho meu, existe alguém que ame e se
emocione melhor do que eu?
E — pasmem-se — se o espelho não for categórico no seu não, o invejoso
começa a sentir-se mal
diante mesmo de seu amor, humilhado e deprimido por estar sendo amado tão bem.
Por incrível que pareça, começa a torcer contra, a esperar que o outro o ame
pior, só para não se sentir inferiorizado. Cada conquista na vida de seu
parceiro é uma tortura. Para o invejoso, o mal é bom e o bem, cruel. Sofre com
a beleza, mas, porque é gente, não pode passar sem ela.
E um coração dominado pela inveja tende a enxergar o mundo como uma revoada
de abutres e urubus, todos torcendo contra e secretamente arquitetando as
maiores derrubadas. Pode se tornar tão doloroso viver, que muitos suicídios
foram causados pela inveja. E também muitas fugas
da realidade e refúgios no mundo louco da fantasia. Quem com olhar de
seca-pimenteira fere, com olhar de seca-pimenteira será ferido. Como o mundo é
enorme, gigantesco, infinitamente mais poderoso
do que qualquer um de nós, enxergá-lo por
esse ângulo é insuportável.
apenas
no amor, mas bem no fundo não se interessa por outras coisas só porque tem medo
da competição. E conheço muita gente que só se interessa por profissão e não se
interessa por amor porque aí, para elas, a competição será maior ainda.