INSTITUTO FREIDIANO DE ESTUDOS PSICANALÍTICOS

sexta-feira, 7 de março de 2014

Os Sete Pecados Capitais



 os sete pecados capitais se relacionam com as doenças mentais — cristianismo e psi­canálise têm vários pontos de convergência — para a psicanálise também são importan­tes o respeito e a disciplina — o prazer não pode ser considerado um pecado
Parte V
Gula
E óbvio que ninguém, em sã consciência, vai conside­rar pecado, em terminologia cristã, ou causa de doença mental, em terminologia psicanalítica, alguém ser bom de garfo, comer gostosamente e, de vez em quando, cometer alguns excessos. Gula não é bem isso. Isso é bom apetite, boa boca, garantida por um fígado melhor ainda.
Por gula a psicanálise entende uma atitude de ter olhos maiores do que a barriga. É uma tentação à comilança, em todos os sentidos do termo. Inclui a comida, mas inclui ainda outros tipos de comida: a comida intelectual que alimenta nossa cabeça; a comida afetiva que alimenta nossos cora­ções; a comida sexual que alimenta nosso sexo; a comida financeira que alimenta nossa conta bancária.
Gula não se limita, pois, a extravagâncias culinárias. Existem muitos tipos de obesidades que não impedem que as calças abotoem e que não aparecem nas balanças das farmácias. Gula não tem também que ver com fome, desejo, apetite. Tem que ver, isso sim, com voracidade e fissura. A pessoa dominada pelo demônio da gula é uma boca enorme aberta para o mundo, uma goela larga, um estômago sem fundo, tudo isso para saciar entranhas insaciáveis. Numa astrologia brasileira, num horóscopo moreno, seria certa­mente do signo do porco, rato, polvo, vampiro ou tubarão.
O problema da gula é que ela proporciona um perma­nente estado de frustração. Tudo que se recebe é pouco para o tamanho da fome. Nada sacia ou desperta genuíno conten­tamento para o boca cósmica. No fundo, ele está numa de­sesperada busca do ilimitado. Qualquer limite, ou barreira, é visto pela gula como desamor, desconsideração, desinte­resse. Assim, porque nunca se sacia, o guloso jamais está contente e jamais pode sentir gratidão por aquilo que recebe. Sua sina é demandar, é consumir. De preferência rapidinho, para poder engolir mais. Perde, pois, a capacidade de sabo­rear a qualidade. Não diria que ele só deseja a quantidade. Pode até desejar a qualidade, porém degusta caviar como se estivesse faminto e abocanhando angu com bofe.
Isso se manifesta também com relação ao apetite de conhecimento. Não lê livros. Devora-os. Não é à toa que recebe o nome de rato de biblioteca. O que falta ao guloso certamente não é garra ou espírito de luta. É capacidade ou de fina assimilação ou de sentir um genuíno prazer nas coisas que faz.
Até aí, tudo bem. O problema se dá é quando esse legítimo apetite de conhecimento ultrapassa os limites do possível. Num primeiro momento, provoca o impulso para a bisbilhotagem, para a espionagem. Contudo, indo mais além, alcança o suplício das dúvidas ou incertezas. E, só porque não entende tudo, pode cair no abismo da perplexidade ou da confusão. E poucas coisas doem tanto quanto a sensação de ter perdido o fio da meada, o entendimento das coisas. A gen­te fica com a nítida impressão de que está enlouquecendo.
A gula (se preferirem, a voracidade) pode, evidente­mente, ser uma das causas do alcoolismo e das toxicoma- nias. Uma sexualidade gulosa vai gerar a ninfomania nas mulheres e a sexomania nos homens. Um amor guloso vai trazer uma carência de tipo polvo, carrapato ou ainda o beijo da mulher-aranha. Uma vaidade gulosa vai exigir uma busca desesperada de prestígios e glória, uma luta frenética pelo poder. E o pior é que nada sacia. Tudo que se é ou se tem é pouco. Assim, podem ocorrer poderosos complexos de infe­rioridade. Se todo afeto é insufícente, se toda homenagem é pequena, sempre se está a um passo da timidez e da insegu­rança.
A vida de uma pessoa possuída pelo demônio da gula pode tornar-se tão infernal que é sempre forte a sua tentação de tirar o time, de sair desse mundo e ingressar no mundo do sonho e da fantasia. Muitas esquizofrenias são causadas por uma goela de tubarão.
Uma pessoa com gula no coração tende ainda a enxergar o mundo como um covil de esfomeados. Passa, por isso, a se sentir superexigida, alugada e explorada por todo o mundo. Sai da terra dos homens e ingressa na terra dos vampiros. Por todo canto, só enxerga chupa-sangue. Chupam-lhe a cabeça. Chupam-lhe o bolso. Chupam-lhe o coração. Chu­pam-lhe até sua energia sexual. Vê dentes afiados por toda a volta. Só lhe resta proteger suas carótidas e jugulares.
Seu tempo é sempre curto para suas necessidades. Está sempre atrasada, correndo contra o relógio e em dívida com sabe-se lá o quê. Tem uma culpa abstrata, poderosa e crô­nica, de que não está fazendo tudo o que devia. É cercada de incompetentes — ou seja, de pessoas normais que evidente­mente não podem fazer milagres.
 
Parte VI
Avareza
A avareza se dá quando a pessoa só consegue enxergar o lado miúdo das coisas. Não tem gente que amesquinha todos os nossos gestos, que só olha para os detalhes menores de nossas intenções? Às pessoas desse tipo falta, acima de tudo, generosidade, grandeza. Estão sempre fissuradas no mesquinho, no detalhe, no irrelevante, no banal. Quando ficam mais velhas, tornam-se avarentas e pães-duras. Ligam-se desesperadamente em dinheiro. Não que dinheiro não tenha importância. É claro que tem, principalmente para quem não o possui. É claro que dinheiro é vital. Todavia, acima de certas quantias, deixa de ser tão importante. A partir daí, apegar-se demasiado a ele já é não acreditar na força das capacidades humanas para gerar aquilo que o di­nheiro não pode comprar.
A história do avarento, contudo, começa no berço. É aquele bebê que se interessa demais pelo tempo que os pais ficam com ele, pelo número de brincadeiras que fazem ou de presentes que trazem. Sua resposta ao que lhe é dado não é generosa ou estimulante. É econômica demais. Parece até que ele considera suas emoções como feitas de ouro, capa­zes de acabar se forem gastas com os outros. E é exatamente isso que sente. Ele é pão-duro de emoções. Como nunca as soltou, não sabe do que emoções soltas são capazes. Nunca experimentou seus poderes e, exatamente por isso, mais tarde vai se agarrar ao dinheiro.
Na adolescência, é aquele jovem que jamais se entrega ou, pelo menos, jamais se arrisca. Não prega prego sem estopa. Não arrisca emoções, desejos. Não arrisca nem idéias. Daí até a cabeça do avarento ser miúda.
Uma pessoa dominada pelo demônio da avareza está sempre se guardando para quando o carnaval chegar, só que, para o avarento, o carnaval não chega nunca. Leva uma vida tão empobrecida que pode se deprimir ou se desesperar com a baixa qualidade de sua existência — se tiver generosidade para perceber isso. Várias depressões ou manias de perse­guição são causadas pela avareza.
Chega de avareza. Por que ser pródigo com ela?
VII
Inveja
A inveja é considerada pela psicanálise uma das princi­pais causas de todas as doenças mentais. É evidente que não me refiro àquela humana torcida contra, que em segredo sentimos por nossos rivais. Nem àquela humana alegria quando se saem mal. Afinal, rival é para essas coisas, não é verdade? E sabemos que sentem o mesmo por nós. Sequer me refiro àquela humilhação e àquele rancor que secreta­mente se sente quando eles se saem melhor. Isso tudo faz parte da vida. Não é sinal de doença. É sinal de saúde. Sinal de que somos gente, de carne e osso, de que não temos sangue de barata e de que não somos de ferro. Tudo isso está certo, até certo ponto. Eu diria mesmo que até um certo
ponto bastante generoso e flexível. Pode-se sentir inveja à vontade. E quem diz que não sente, não passa de um menti­roso ou, no mínimo, de um reprimido. No entanto, a inveja tem limites, além dos quais ela arruina a vida de qualquer um. Isso porque a inveja desperta, a todo momento, os piores sentimentos. Acima de tudo, dominados pelo demônio da inveja, cedo ou tarde todos se convertem em impiedosos rivais. Não existem mais irmãos. Existem apenas competi­dores, em uma luta de vida e morte, da qual só poderá sair um único vencedor.
A inveja — tal como a psicanálise descobriu — infil­tra-se sorrateiramente até em nossos relacionamentos mais enamorados. Quanto melhor uma pessoa nos ame, quanto mais belas forem suas emoções para conosco, mais sofre e se humilha nosso lado invejoso. Por que ele me ama tão bem? Por que são tão lindas as suas emoções? Espelho, espelho meu, existe alguém que ame e se emocione melhor do que eu?
E — pasmem-se — se o espelho não for categórico no seu não, o invejoso começa a sentir-se mal diante mesmo de seu amor, humilhado e deprimido por estar sendo amado tão bem. Por incrível que pareça, começa a torcer contra, a esperar que o outro o ame pior, só para não se sentir inferio­rizado. Cada conquista na vida de seu parceiro é uma tor­tura. Para o invejoso, o mal é bom e o bem, cruel. Sofre com a beleza, mas, porque é gente, não pode passar sem ela.
E um coração dominado pela inveja tende a enxergar o mundo como uma revoada de abutres e urubus, todos tor­cendo contra e secretamente arquitetando as maiores derru­badas. Pode se tornar tão doloroso viver, que muitos suicí­dios foram causados pela inveja. E também muitas fugas da realidade e refúgios no mundo louco da fantasia. Quem com olhar de seca-pimenteira fere, com olhar de seca-pimenteira será ferido. Como o mundo é enorme, gigantesco, infinita­mente mais poderoso do que qualquer um de nós, enxergá-lo por esse ângulo é insuportável.

apenas no amor, mas bem no fundo não se interessa por outras coisas só porque tem medo da competição. E conheço muita gente que só se interessa por profissão e não se inte­ressa por amor porque aí, para elas, a competição será maior ainda.