(Karen Horney)
Visto como já examinamos o
trabalho psicanalítico sob diversos pontos de vista, e vimos, através de um
exemplo extenso, o processo geral por que uma pessoa se psicanalisa a si mesma,
dificilmente será necessário – e parecerá mesmo redundante – discutir
sistematicamente a técnica da auto-análise. Os comentários a seguir, portanto,
apenas ressaltarão certas considerações, muitas das quais já mencionadas a
outros respeitos, que merecem atenção especial quanto se atua sobre o próprio
eu.
Conforme vimos, o processo
de livre associação, de auto-expressão franca e sem reservas, é o ponto de
partida e a base permanente de todo o trabalho analítico – auto-análise ou
análise profissional -, mas não é, de maneira alguma, uma proeza fácil. Poderia
imaginar-se que este processo fosse mais simples quando se trabalha sozinho,
porquanto, nesse caso, não há ninguém para interpretar mal, criticar,
intrometer-se ou revidar; além disso, não é tão humilhante manifestar-se a
respeito de coisas de que a gente possa envergonhar-se. Até certo ponto isso é
verdade, embora também seja verdade que uma pessoa de fora, pelo simples fato
de estar escutando, proporciona estímulo e encorajamento. Não há dúvida alguma,
porém, que quer se esteja trabalhando só ou com um analista, os maiores
obstáculos à livre expressão estão sempre dentro da pessoa. Esta anseia tanto
por ignorar certos fatores, e por manter a imagem que tem de si própria, que,
sozinha ou não, o máximo que pode esperar é uma certa aproximação do ideal das
associações livres. Em vista destas dificuldades, a pessoa que trabalha só deve
lembrar-se, de tempos em tempos, que estará agindo contra seus verdadeiros
interesses se deixar de lado ou eliminar qualquer idéia ou sentimento que venha
à tona. Deve lembrar-se, igualmente, de que a responsabilidade é exclusivamente
sua: não há ninguém senão ela para adivinhar um elo que esteja faltando ou para
investigar acerca de um vácuo deixado em suspenso.
Este escrúpulo é particularmente
importante com referência à expressão de sentimentos. A este propósito, há dois
preceitos que deve-se ter em
mente. Um, é o de que a pessoa deve procurar exprimir o que
sente realmente, e não o que deve sentir por força de tradições ou de seus próprios
padrões morais. Deve, ao menos, dar-se conta de que pode haver um hiato imenso
e significativo entre os sentimentos genuínos e os adotados artificialmente, e
deve perguntar-se, às vezes – não enquanto estiver associando, mas
posteriormente – o que sente deveras sobre o assunto. A outra regra é que deve
dar rédeas tão largas quanto possível a seus sentimentos. Isto, também, é mais
fácil de dizer do que de fazer. Pode parecer ridículo sentir-se tremendamente
magoado por uma ofensa aparentemente banal. Pode ser incrível e desagradável
desconfiar e odiar alguém que nos é muito chegado; pode-se não ter dúvidas em
admitir um esboço de irritação, mas achar-se assustador constatar que a ira
está deveras presente. Deve lembrar-se, contudo, que, no que toca às conseqüências
externas, nenhuma situação é menos perigosa do que a da análise, para uma
expressão real dos sentimentos. Na análise só importa a conseqüência interior,
e esta consiste em identificar-se a intensidade total de um sentimento. Na
análise só importa a conseqüência interior, e esta consiste em identificar-se a
intensidade total de um sentimento. Pois, em questão psicológica, também, não
se pode enforcar quem ainda não foi capturado.
Evidentemente, ninguém é
capaz de desentocar à força sentimentos que estão reprimidos. Tudo o que
qualquer um pode fazer é não refrear o que está ao seu alcance. Com toda a boa
vontade do mundo, Clara, no início de sua análise, não teria podido sentir ou
exprimir mais ressentimento contra Peter do que o fez, mas, à medida que a
análise progrediu, tornou-se capaz de perceber a intensidade real de seus
sentimentos. Sob um certo ponto de vista, toda a evolução por que ela passou
pode ser descrita como uma liberdade crescente para perceber o que de fato
sentia.
Mais uma palavra quanto à
técnica da livre associação: é indispensável abster-se de raciocinar enquanto
se estiver associando. O raciocínio tem seu lugar na análise e são muitas as
oportunidades para utilizá-lo – depois. Mas, segundo já foi acentuado, a
essência mesma da livre associação é sua espontaneidade. Por conseguinte, a
pessoa que estiver tentando fazê-la, não deve procurar chegar a uma solução
raciocinada. Suponha-se, por exemplo, que você está tão cansado e bambo que
gostaria de arrastar-se até a cama e declarar-se doente. Aí você olha para
fora, da janela de um segundo andar, e dá tento de que está pensando que se
você caísse no máximo quebraria um braço. Isto o espanta. Você não sabia que
estava desesperado, tão desesperado a ponto de querer morrer. A seguir, você
ouve um rádio tocando no andar de cima, e pensa, com uma certa irritação, que
gostaria de dar um tiro no sujeito que está ouvindo o rádio. Você conclui, com
razão, que deve haver raiva, além de desespero, no fato de sentir-se doente.
Até aqui você vai indo bem. Você já se sente menos paralisado, porquanto se
está furioso com alguma coisa talvez possa encontrar a razão para isso. Mas, aí
você começa a pesquisar conscientemente, num frenesi, o que é que pode tê-lo
enfurecido. Examina todos os incidentes que ocorreram antes de sentir-se tão
cansado. É possível que você atine com a provocação, mas o mais provável é que
toda sua busca consciente dê em nada – e que a causa real lhe ocorra
meia hora mais tarde, depois de você ter desanimado ante a futilidade de suas
tentativas e de ter desistido da investigação consciente.
Tão improdutivo quanto essas
tentativas de forçar uma solução é o procedimento de uma pessoa que, mesmo
quando deixa a mente trabalhar em liberdade, procura descobrir o significado de
suas associações, ligando-as umas às outras. Seja o que for que o leva a fazer
isso, quer se trate de impaciência, de uma necessidade de ser inteligente ou de
um receio de dar saída a idéias e sentimentos incontroláveis, esta intromissão
do raciocínio propende a perturbar a situação de repouso necessária à livre
associação. É verdade que o significado de uma associação pode surgir
espontaneamente. A série de associações de Clara, que terminou com a letra do
cântico religioso, é um bom exemplo disto: as associações dela mostraram um
grau crescente de lucidez, apesar de não ter sido feito nenhum esforço
consciente para entendê-las. Por outras palavras, os dois processos –
auto-expressão e compreensão – as vezes podem coincidir. Sem embargo, no que
toca a esforços conscientes, eles devem ser conservados rigorosamente
separados.
Se estabelecermos assim uma
distinção clara entre a livre associação e a compreensão, quando é que se pára
de associar e tenta-se compreender? Felizmente, não há regra alguma para isso.
Enquanto os pensamentos estiverem fluindo livremente, não há motivo para
detê-los artificialmente: mais cedo ou mais tarde, serão contidos por algo mais
forte do que eles mesmos. Quiçá a pessoa chegue a um ponto onde se sinta
curiosa de saber o que é que tudo aquilo significa; toque, de repente, em uma
corda emocional que prometa lançar luz sobre algo que a incomoda; fique,
simplesmente, sem idéias, o que pode ser um sinal de resistência, mas também
pode indicar que esgotou o assunto, por enquanto; ou pode apenas dispor de
tempo limitado e queira ainda tentar interpretar suas anotações.
Quanto à compreensão das
associações, é tão infinita a gama dos temas e combinações de temas que pode
apresentar-se, que não é possível fixar quaisquer regras a respeito do significado
dos elementos individuais dos contextos individuais. Certos princípios
fundamentais foram estudados no capítulo relativo à participação do analista no
processo analítico; entretanto, forçosamente muito é deixado a cargo da
habilidade, presença de espírito e capacidade de concentração de cada um. Por
isso, limitar-me-ei a ampliar o que já foi dito, acrescentando algumas
observações sobre o intuito que deve presidir à interpretação.
Quando uma pessoa pára de associar e começa a examinar
suas anotações, com o fim de compreendê-las, seu método de trabalho deve mudar:
em lugar de ficar inteiramente passiva e receptiva ante tudo o que aparecer,
tornar-se ativa. Agora, o raciocínio dela entra em ação. Prefiro
exprimir isso, entretanto, de forma negativa: ela não mais exclui o raciocínio,
pois mesmo agora ela não o emprega com exclusividade. É difícil descrever
exatamente a atitude que deve ser adotada ao procurar apreender o significado
de uma série de associações. Por certo, o processo não deve degenerar em um
mero exercício intelectual. Se quiser isso, será melhor jogar xadrez, prever a
evolução da política mundial, ou dedicar-se a palavras cruzadas. Um esforço
para conceber interpretações perfeitamente escorreitas, sem perder nenhuma
conotação possível, talvez gratifique-lhe a vaidade, demonstrando a
superioridade de sua inteligência, mas dificilmente o levará mais próximo de
uma verdadeira compreensão de si mesma. Um esforço assim chega mesmo a oferecer
algum perigo, pois pode impedir o progresso ao produzir uma confortável
impressão de “eu-sei-tudo”, enquanto, de fato, ela apenas catalogou dados
isolados sem ter sido tocada por coisa alguma.
O outro extremo, um
“insight” meramente emocional, é bem mais valioso. Se não for posteriormente
aperfeiçoado, tampouco é o ideal a atingir, porquanto deixa fugir muitas pistas
significativas, malgrado não estejam ainda nítidas de todo. Mas, consoante
vimos na análise de Clara, um “insight” deste gênero pode pôr alguma coisa em marcha. No início do
trabalho, ela teve uma sensação intensa de estar extraviada, decorrente do
sonho com a cidade estrangeira; foi mencionado, então, que embora seja
impossível verificar se essa experiência emocional teve qualquer repercussão
ulterior na análise, a inquietação resultante pode ter afrouxado o tabu rígido
que ela possuía face aos vínculos complexos que a prendiam a Peter. Outro caso
ocorreu durante a batalha final de Clara contra sua dependência, quando sentiu
sua franca resistência a governar a própria vida; ela, então, não tinha a menor
noção intelectual do significado deste “insight” emocional, e, no entanto,
ajudou-a a sair de um estado de impotência letárgica.
Em vez de desejar produzir uma obra-prima científica,
a pessoa que está trabalhando sozinha deve deixar sua interpretação ser
dirigida por seu interesse. Deve simplesmente ir em pró daquilo que lhe atrai a
atenção, que lhe desperta a curiosidade, que toca uma corda emocional em seu
íntimo. Se for suficientemente flexível para deixar-se guiar por seu interesse
espontâneo, pode ficar razoavelmente certa de que intuitivamente escolherá os
assuntos que, no momento, lhe forem mais acessíveis à compreensão, ou que se
enquadrarão no problema em que ela estiver trabalhando.
Presumo que este conselho
suscitará algumas dúvidas. Não estarei advogando uma excessiva tolerância? Será
que o interesse do indivíduo não o levará a escolher assuntos com os quais está
familiarizado? Não significará isto ceder ante as resistências? Examinarei em
um capítulo à parte como lidar com as resistências; basta dizer, aqui, que é
verdade que deixar-se levar pelos próprios interesses significa adotar o
caminho de menor resistência. Mas, a menor resistência não quer dizer a mesma
coisa que nenhuma resistência. O princípio significa, essencialmente, a busca
dos assuntos que, no momento, são os menos reprimidos. E é este, exatamente, o
princípio que o analista aplica quando apresenta suas interpretações. Ele, como
já foi salientado, escolhe para interpretar os fatores que, segundo crê, o
paciente pode apreender perfeitamente na ocasião, e renuncia a aventurar-se por
problemas que ainda estão muito reprimidos.
Toda a auto-análise de Clara
ilustra a validade deste procedimento. Aparentemente sem querer, nunca se deu
ao trabalho de atacar nenhum problema que não evocasse uma reação nela, mesmo
que estivesse praticamente “na cara”. Sem nada saber acerca do princípio de
orientação pelo interesse, intuitivamente o aplicou através de todo seu
trabalho, e isso foi-lhe muito útil. Um exemplo pode representar muito. Na
série de associações que concluiu com o primeiro aparecimento do devaneio sobre
o grande homem, Clara identificou somente o papel desempenhado em sua relação
pela necessidade de proteção. As sugestões referentes a suas outras
expectativas dos homens, foram por ela postas de lado inteiramente, malgrado
fossem óbvias e se destacassem no devaneio. Esta escolha intuitiva levou-a a
adotar a melhor linha de ação possível. Ela absolutamente não avançou por
terreno conhecido: a descoberta de que a necessidade de proteção era parte
integrante de seu “amor”, foi uma descoberta de um fator até então
desconhecido. Outrossim, conforme deve estar ainda na lembrança do leitor, esta
descoberta constitui a primeira incursão contra sua ilusão querida de “amor”, o
que foi, por si mesmo, um passo penoso e incisivo. Tomar, ao mesmo tempo, o
problema agravante de sua atitude parasitária com relação aos homens, teria
sido certamente por demais árduo, a menos que o tratasse de forma superficial.
Isto leva-nos a um último pormenor: não é possível absorver mais do que um
“insight” importante de cada vez. A tentativa de fazê-lo será nociva a ambos,
ou a todos eles. Qualquer “insight” relevante requer tempo e concentração
total, para que possa “assentar” e enraizar-se.
A compreensão de uma série
de associações exige flexibilidade, não só na direção do trabalho, como
acabamos de ver, mas também no modo de abordar. Por outras palavras, na seleção
de problemas a gente deve orientar-se pelos interesses emocionais espontâneos,
bem como pela inteligência; também no estudo dos problemas que aparecem,
deve-se passar com facilidade do pensamento deliberado para a apreensão
intuitiva das ligações. Este último requisito pode ser comparado à atitude
necessária quando se estuda uma pintura: pensamos a respeito da composição, da
combinação de cores, das pinceladas e de coisas do mesmo jaez, mas também
levamos em conta as reações emocionais provocadas em nós pela pintura. Isto
corresponde, igualmente, à atitude que o analista adota face às associações de
um paciente. Enquanto estou escutando o que o paciente me diz, às vezes medito
intensamente sobre possíveis significados, chegando a uma conjetura só por
deixar a conversa do paciente agir sobre minhas faculdades intuitivas. A
verificação de qualquer conclusão, contudo, não importa como se tenha chegado a
ela, sempre impõe completa atenção intelectual.
Uma pessoa pode achar,
naturalmente, que em uma série de associações nada lhe desperta o interesse em
particular; ela apenas vê uma ou outra possibilidade, mas nada de esclarecedor.
Ou, no extremo oposto, pode achar que mesmo que se detenha em uma conexão,
certos outros elementos também a impressionam. Em ambos os casos, será bom que
anote à margem as questões deixadas em suspenso. Talvez
no futuro, ao recapitular suas anotações, as possibilidades meramente teóricas
tenham algum significado para ela, ou as perguntas guardadas possam ser agora
examinadas em maior detalhe.
Há, ainda, um último escolho
a ser citado: nunca aceite mais do que você pode acreditar deveras. Este perigo
é maior na análise regular, especialmente se o paciente é daqueles que tendem a
concordar com afirmações peremptórias. Mas também pode desempenhar um papel
quando a pessoa confia em seus próprios recursos. Ela pode sentir-se obrigada,
por exemplo, a aceitar o que quer que de “mau” surja a seu respeito, e a
desconfiar de uma “resistência” caso hesite em fazê-lo. Ficará
mais garantida, porém, se encarar sua interpretação como simples tentativa, sem
procurar convencer-se de que é definitiva. A essência da análise é a verdade, e
isto deve aplicar-se igualmente à aceitação ou não das interpretações.
O perigo de fazer uma
interpretação desorientadora, ou pelo menos improfícua nunca pode ser
eliminado, mas não se precisa temer isso excessivamente. Se a pessoa não
baqueia, mas prossegue dentro da mentalidade certa, mais cedo ou mais tarde
aparecerá uma trilha mais proveitosa, ou então se dará conta de estar em um
beco sem saída e talvez até aprenda alguma coisa com essa experiência. Clara,
por exemplo, antes de empenhar-se na análise de sua dependência, passará uns
dois meses escavando à procura de uma suposta necessidade de impor sua vontade.
Graças aos dados que surgiram posteriormente, podemos entender porque ela se
deixou arrastar naquela direção. Ela me contou, todavia, que durante essas
tentativas nunca tivera uma convicção nem de longe semelhante às que sentiu
mais tarde, durante o período relatado. Ademais, a razão definitiva pela qual
seguirá aquele caminho fora o fato de Peter censurá-la freqüentemente por ser
dominadora. Isto ilustra dois pontos acima assinalados: a importância de seguir
os próprios interesses, e a de não aceitar nada sem plena convicção. Conquanto
esta busca inicial de Clara tenha se traduzido por um desperdício de tempo, deu
em nada sem prejuízo algum, e não a impediu de realizar trabalho altamente
construtivo mais tarde.
O caráter construtivo do
trabalho de Clara deveu-se não só à conexão intrínseca das interpretações dela,
mas igualmente ao fato de sua análise, naquele período, mostrar um notável grau
de continuidade. Sem pretender concentrar-se em um problema – por longo tempo
ela nem soube qual era – tudo em que ela se embrenhava acabava sendo uma
contribuição para o problema de sua dependência. Esta constante concentração
inconsciente em um único problema, que a levou a abordá-lo inexoravelmente de
ângulos sempre novos, é conveniente, mas raramente conseguida na mesma medida.
Podemos explicá-la, no caso de Clara, por estar ela vivendo, na época, sob uma
pressão formidável – cuja intensidade só reconheceu perfeitamente mais tarde –
e, daí, inconscientemente, aplicar todas suas energias na resolução de
problemas que contribuíam para esta. Uma situação assim compulsória não pode
ser criada artificialmente; quanto mais absorvente for o interesse da pessoa em
um problema, porém, tanto mais próxima desta será a concentração conseguida.
A auto-análise de Clara
ilustra muito bem as três etapas examinadas no Cap. III: identificação de uma
tendência neurótica, compreensão de suas implicações, e descobrimento de suas
inter-relações com outras tendências neuróticas. Na análise de Clara, como sói
ocorrer muitas vezes, as etapas recobriram-se até certo ponto: ela identificou
muitas das implicações, antes de finalmente localizar a própria tendência.
Tampouco fez qualquer esforço para executar qualquer etapa definida em sua
análise: ela não se dispôs deliberadamente a descobrir uma tendência neurótica,
nem examinou deliberadamente as ligações entre sua dependência e sua modéstia
compulsiva. A identificação da tendência veio por si mesma; e, analogamente, os
elos de conexão entre as duas tendências tornaram-se cada vez mais visíveis,
quase que automaticamente, à proporção que o trabalho analítico foi
progredindo. Por outras palavras, Clara não escolheu os problemas – pelo menos
conscientemente – mas os problemas vieram a ela, e ao se exibirem revelaram uma
continuidade orgânica.
Houve, na análise de Clara,
uma continuidade de outra espécie, ainda mais importante, e mais possível de
ser emulada; em nenhum momento houve qualquer “insight” que ficasse isolado ou
desligado. O que vimos desenvolver-se, não foi um acúmulo de “insights”, mas
sim uma configuração estrutural. Mesmo que cada “insight” de per si, que o
indivíduo obtenha esteja certo, ele ainda pode privar-se dos maiores benefícios
do trabalho se os “insights” permanecerem dispersos.
Portanto, Clara, após
reconhecer que se deixará afundar na desgraça porque secretamente acreditava
que com isso poderia obter ajuda, podia ter-se
limitado a localizar a origem dessa tendência na infância e a encará-la
como uma crença infantil persistente. Isso talvez lhe ajudasse um pouco, por
que ninguém gosta realmente de ser desgraçado sem uma boa razão; na vez
seguinte em que se visse sucumbindo ante uma crise de desgraça, talvez se
sentisse desprevenida. Mas, na melhor hipótese, essa sua maneira de tratar o
“insight” teria diminuído, com o passar do tempo, os ataques flagrantes de
infelicidade exagerada. E esses ataques não eram a expressão mais importante da
tendência. Ou então, ela poderia não ter ido além da etapa seguinte, de ligar
sua descoberta com sua real falta de agressividade e de reconhecer que sua
crença em ajuda mágica podia substituir uma forma ativa de enfrentar as
dificuldades da vida. Isto, embora ainda inadequado, teria auxiliado bem mais,
porque teria aberto um novo incentivo para pôr fim a toda atitude de impotência
que se ocultava por detrás daquela crença. Mas, se ela não tivesse associado a
crença na ajuda mágica com sua dependência, e visto uma como parte integrante
da outra, não teria podido superar completamente a crença, porque faria sempre
a restrição inconsciente de que se ao menos pudesse encontrar o “amor”
permanente, sempre poderia contar com ajuda. Foi só porque viu essa conexão, e
reconheceu a falácia de uma tal expectativa e o tremendo preço que tinha de
pagar por ela, que a introvisão teve o efeito radicalmente libertador.
Assim, não é absolutamente
uma questão puramente de interesse teórico uma pessoa descobrir como um traço
de personalidade está implantado em sua estrutura, com múltiplas raízes e
efeitos; também é da máxima importância terapêutica. Este requisito pode ser
expresso em termos familiares de dinâmica: é preciso conhecer-se a dinâmica de
uma tendência antes de poder mudá-la. Mas, esta palavra é como uma moeda que
com o uso vai ficando fina e um tanto gasta. Além do mais, sugere comumente a
idéia de forças impulsoras, e pode ser interpretada aqui como significando que
se deve apenas procurar essas forças, quer nos primeiros anos da infância quer
no presente. Neste caso, a noção de dinâmica seria enganosa, porquanto a
influência que uma tendência exerce na totalidade da personalidade é tão
importante quanto os fatores que determinam sua existência.
Não é de modo algum somente
em questões psicológicas que é essencial esta percepção das inter-relações
estruturais. As considerações por mim salientadas aplicam-se com o mesmo peso, por exemplo, às questões de doença orgânica.
Nenhum bom médico considerará uma doença do coração como um fenômeno isolado.
Ele também levará em conta como o coração é influenciado por outros órgãos,
como os rins e os pulmões. E ele deve saber que o estado do coração, por sua
vez, afeta outros sistemas do corpo: por exemplo, a circulação do sangue ou o
trabalho do fígado. Seu conhecimento das influências dessa ordem irão
auxiliá-lo a entender a intensidade da perturbação.
Se é assim essencial, no
trabalho analítico, não perder-se em detalhes dispersos, como se pode conseguir
a desejada continuidade? Teoricamente, a resposta está implícita nos parágrafos
precedentes. Se uma pessoa fez uma observação pertinente ou conseguiu um
“insight”, deve examinar como a peculiaridade desvendada manifesta-se em várias
áreas, quais as suas conseqüências e quais os fatores de sua personalidade por
ela responsáveis. Isto, porém, pode ser encarado como uma afirmação assaz
imaginária. Deve-se ter em mente, entretanto, que qualquer exemplo sumário
necessariamente dá a impressão de uma clareza e simplicidade que na realidade
não existem. Ademais, um exemplo desses, destinado a mostrar a variedade de
fatores a serem identificados, não pode indicar as experiências emocionais que
a pessoa tem ao analisar-se e, por conseguinte, só dá uma imagem unilateral e supra-racionalizada.
Tendo em mente estas
restrições, suponhamos uma pessoa que observou que, em dadas situações em que
gostaria de participar de discussões, fica com a língua presa porque receia as
possíveis críticas. Se ela permitir esta observação arraigar-se em si, começará
a matutar acerca do receio em questão, visto como não é proporcional a qualquer
risco real. Pensará por que o medo é tão grande que lhe impede não só de
exprimir suas idéias, mas também de pensar claramente. Perguntar-se-á se o medo
é maior do que sua ambição, e se é maior do que quaisquer considerações de
ordem prática, que, pelo bem de sua carreira, tornem conveniente causar uma boa
impressão.
Tendo obtido assim um
interesse pelo problema, procurará verificar se dificuldades semelhantes
fazem-se sentir em outros setores de sua vida e, em caso afirmativo, de que
forma se revestem. Examinará suas relações com mulheres: será que ele é tímido
demais para aproximar-se delas receando que encontrem defeitos nele? E que
dizer de sua vida sexual? Esteve impotente durante algum tempo por não poder
esquecer-se de um insucesso? Reluta em ir a festas? Como é que age quanto a
compras? Dá gorjetas exageradas porque teme que, de outra forma, o vendedor o
considere sovina? Ainda mais, quão vulnerável é ele exatamente com relação a
críticas? O que basta para deixá-lo embaraçado ou para fazê-lo sentir-se
melindrado? Ele fica magoado quando sua esposa critica abertamente sua gravata
ou fica incomodado quando ela apenas elogia João por combinar sempre a gravata
com as meias?
Essas considerações
dar-lhe-ão uma impressão da intensidade e extensão de sua dificuldade e de suas
várias manifestações. Quererá saber, então, como é que ela afeta sua vida. Já
sabe que o deixa inibido em muitos setores. Ele não pode afirmar-se; é muito
complacente com o que os outros esperam dele; portanto, nunca pode ser ele
mesmo, mas sim tem que desempenhar automaticamente um certo papel. Isto o deixa
ressentido contra os demais, pois parecem dominá-lo, além de rebaixar seu amor-próprio.
Finalmente, procura os
fatores responsáveis pela dificuldade. O que o deixou tão receoso de críticas?
Pode recordar-se de que seus pais fizeram-no apegar-se a padrões muito severos,
e pode lembrar-se de uma série de incidentes em que foi repreendido ou em que o
fizeram sentir-se deslocado. Mas também terá de pensar em todos os pontos
fracos de sua verdadeira personalidade que, em sua totalidade, tornam-no
dependente dos outros e, por isso, fazem-no considerar a opinião que fazem dele
como da máxima importância. Se puder encontrar respostas para todas essas
perguntas, seu reconhecimento de que teme as críticas não mais será um
“insight” isolado, mas verá a relação deste traço com toda a estrutura de sua
personalidade.
Pode bem ser perguntado se
com este exemplo eu quero dizer que uma pessoa que haja descoberto um novo
fator deve deliberadamente esquadrinhar suas experiências e seus sentimentos
das várias maneiras indicadas. Por certo que não, pois um procedimento desses
envolveria o mesmo perigo de um domínio meramente intelectual, que já foi
discutido. Pelo contrário, ela deve assegurar-se um período de contemplação.
Deve meditar sobre sua descoberta mais ou menos da forma que um arqueólogo que
descobriu uma estátua enterrada, muito mutilada, olha seu tesouro de todos os
ângulos até que as formas originais revelem-se à sua mente. Qualquer fator novo
que a pessoa identifique é como a luz de um projetor voltada para certos
domínios de sua vida, iluminando pontos que até então haviam permanecido no escuro.
Ele quase que é obrigado a vê-los, se ao menos estiver verdadeiramente
interessado em
conhecer-se. Este são pontos em que a orientação de um
especialista seria particularmente útil. Nessas ocasiões, um analista ajudaria
efetivamente o paciente a ver o significado da descoberta, fazendo uma ou outra
pergunta sugerida por ela e ligando-a a descobertas anteriores. Quando não se
dispõe de um auxílio exterior desses, a melhor coisa a fazer é abster-se de
prosseguir correndo na análise, recordando que um novo “insight” significa a
conquista de território novo, e procurando beneficiar-se dessa conquista
consolidando a vantagem obtida. Em cada um dos exemplos dados no capítulo sobre
auto-análise esporádica, citei perguntas que poderiam ter sido lembradas pelo “insight”
obtido. Podemos estar bem certos de que a razão pela qual as pessoas
interessadas não atinaram com essas perguntas, foi somente por ter o seu
interesse acabado com o afastamento de suas dificuldades imediatas.
Se perguntássemos a Clara
como foi que conseguiu tão notável continuidade em sua análise, provavelmente
ela daria a mesma resposta dada por uma boa cozinheira quando lhe é pedida uma
receita: a resposta, em suma, é que segue seu “instinto”. No caso da análise,
contudo, essa resposta não é tão satisfatória como no de um omelete. Ninguém
pode tomar por empréstimo os “instintos” de Clara, mas todos possuem seus
“instintos” próprios pelos quais se podem guiar. E isto traz-nos de volta a
algo que foi discutido acima, ao tratarmos da interpretação de associações: é
útil ter uma noção daquilo que se está procurando, mas a procura deve ser
dirigida pela iniciativa e pelo interesse da própria pessoa. Deve-se aceitar o
fato de que se é um ser humano, movido por necessidade.