INSTITUTO FREIDIANO DE ESTUDOS PSICANALÍTICOS

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

ESSÊNCIA E REGRA DA AUTO-ANÁLISE SISTEMÁTICA


                                        
        

 (Karen Horney)

Visto como já examinamos o trabalho psicanalítico sob diversos pontos de vista, e vimos, através de um exemplo extenso, o processo geral por que uma pessoa se psicanalisa a si mesma, dificilmente será necessário – e parecerá mesmo redundante – discutir sistematicamente a técnica da auto-análise. Os comentários a seguir, portanto, apenas ressaltarão certas considerações, muitas das quais já mencionadas a outros respeitos, que merecem atenção especial quanto se atua sobre o próprio eu.

Conforme vimos, o processo de livre associação, de auto-expressão franca e sem reservas, é o ponto de partida e a base permanente de todo o trabalho analítico – auto-análise ou análise profissional -, mas não é, de maneira alguma, uma proeza fácil. Poderia imaginar-se que este processo fosse mais simples quando se trabalha sozinho, porquanto, nesse caso, não há ninguém para interpretar mal, criticar, intrometer-se ou revidar; além disso, não é tão humilhante manifestar-se a respeito de coisas de que a gente possa envergonhar-se. Até certo ponto isso é verdade, embora também seja verdade que uma pessoa de fora, pelo simples fato de estar escutando, proporciona estímulo e encorajamento. Não há dúvida alguma, porém, que quer se esteja trabalhando só ou com um analista, os maiores obstáculos à livre expressão estão sempre dentro da pessoa. Esta anseia tanto por ignorar certos fatores, e por manter a imagem que tem de si própria, que, sozinha ou não, o máximo que pode esperar é uma certa aproximação do ideal das associações livres. Em vista destas dificuldades, a pessoa que trabalha só deve lembrar-se, de tempos em tempos, que estará agindo contra seus verdadeiros interesses se deixar de lado ou eliminar qualquer idéia ou sentimento que venha à tona. Deve lembrar-se, igualmente, de que a responsabilidade é exclusivamente sua: não há ninguém senão ela para adivinhar um elo que esteja faltando ou para investigar acerca de um vácuo deixado em suspenso.

Este escrúpulo é particularmente importante com referência à expressão de sentimentos. A este propósito, há dois preceitos que deve-se ter em mente. Um, é o de que a pessoa deve procurar exprimir o que sente realmente, e não o que deve sentir por força de tradições ou de seus próprios padrões morais. Deve, ao menos, dar-se conta de que pode haver um hiato imenso e significativo entre os sentimentos genuínos e os adotados artificialmente, e deve perguntar-se, às vezes – não enquanto estiver associando, mas posteriormente – o que sente deveras sobre o assunto. A outra regra é que deve dar rédeas tão largas quanto possível a seus sentimentos. Isto, também, é mais fácil de dizer do que de fazer. Pode parecer ridículo sentir-se tremendamente magoado por uma ofensa aparentemente banal. Pode ser incrível e desagradável desconfiar e odiar alguém que nos é muito chegado; pode-se não ter dúvidas em admitir um esboço de irritação, mas achar-se assustador constatar que a ira está deveras presente. Deve lembrar-se, contudo, que, no que toca às conseqüências externas, nenhuma situação é menos perigosa do que a da análise, para uma expressão real dos sentimentos. Na análise só importa a conseqüência interior, e esta consiste em identificar-se a intensidade total de um sentimento. Na análise só importa a conseqüência interior, e esta consiste em identificar-se a intensidade total de um sentimento. Pois, em questão psicológica, também, não se pode enforcar quem ainda não foi capturado.

Evidentemente, ninguém é capaz de desentocar à força sentimentos que estão reprimidos. Tudo o que qualquer um pode fazer é não refrear o que está ao seu alcance. Com toda a boa vontade do mundo, Clara, no início de sua análise, não teria podido sentir ou exprimir mais ressentimento contra Peter do que o fez, mas, à medida que a análise progrediu, tornou-se capaz de perceber a intensidade real de seus sentimentos. Sob um certo ponto de vista, toda a evolução por que ela passou pode ser descrita como uma liberdade crescente para perceber o que de fato sentia.

Mais uma palavra quanto à técnica da livre associação: é indispensável abster-se de raciocinar enquanto se estiver associando. O raciocínio tem seu lugar na análise e são muitas as oportunidades para utilizá-lo – depois. Mas, segundo já foi acentuado, a essência mesma da livre associação é sua espontaneidade. Por conseguinte, a pessoa que estiver tentando fazê-la, não deve procurar chegar a uma solução raciocinada. Suponha-se, por exemplo, que você está tão cansado e bambo que gostaria de arrastar-se até a cama e declarar-se doente. Aí você olha para fora, da janela de um segundo andar, e dá tento de que está pensando que se você caísse no máximo quebraria um braço. Isto o espanta. Você não sabia que estava desesperado, tão desesperado a ponto de querer morrer. A seguir, você ouve um rádio tocando no andar de cima, e pensa, com uma certa irritação, que gostaria de dar um tiro no sujeito que está ouvindo o rádio. Você conclui, com razão, que deve haver raiva, além de desespero, no fato de sentir-se doente. Até aqui você vai indo bem. Você já se sente menos paralisado, porquanto se está furioso com alguma coisa talvez possa encontrar a razão para isso. Mas, aí você começa a pesquisar conscientemente, num frenesi, o que é que pode tê-lo enfurecido. Examina todos os incidentes que ocorreram antes de sentir-se tão cansado. É possível que você atine com a provocação, mas o mais provável é que toda sua busca consciente dê em nada – e que a causa real lhe ocorra meia hora mais tarde, depois de você ter desanimado ante a futilidade de suas tentativas e de ter desistido da investigação consciente.

Tão improdutivo quanto essas tentativas de forçar uma solução é o procedimento de uma pessoa que, mesmo quando deixa a mente trabalhar em liberdade, procura descobrir o significado de suas associações, ligando-as umas às outras. Seja o que for que o leva a fazer isso, quer se trate de impaciência, de uma necessidade de ser inteligente ou de um receio de dar saída a idéias e sentimentos incontroláveis, esta intromissão do raciocínio propende a perturbar a situação de repouso necessária à livre associação. É verdade que o significado de uma associação pode surgir espontaneamente. A série de associações de Clara, que terminou com a letra do cântico religioso, é um bom exemplo disto: as associações dela mostraram um grau crescente de lucidez, apesar de não ter sido feito nenhum esforço consciente para entendê-las. Por outras palavras, os dois processos – auto-expressão e compreensão – as vezes podem coincidir. Sem embargo, no que toca a esforços conscientes, eles devem ser conservados rigorosamente separados.

Se estabelecermos assim uma distinção clara entre a livre associação e a compreensão, quando é que se pára de associar e tenta-se compreender? Felizmente, não há regra alguma para isso. Enquanto os pensamentos estiverem fluindo livremente, não há motivo para detê-los artificialmente: mais cedo ou mais tarde, serão contidos por algo mais forte do que eles mesmos. Quiçá a pessoa chegue a um ponto onde se sinta curiosa de saber o que é que tudo aquilo significa; toque, de repente, em uma corda emocional que prometa lançar luz sobre algo que a incomoda; fique, simplesmente, sem idéias, o que pode ser um sinal de resistência, mas também pode indicar que esgotou o assunto, por enquanto; ou pode apenas dispor de tempo limitado e queira ainda tentar interpretar suas anotações.
              
Quanto à compreensão das associações, é tão infinita a gama dos temas e combinações de temas que pode apresentar-se, que não é possível fixar quaisquer regras a respeito do significado dos elementos individuais dos contextos individuais. Certos princípios fundamentais foram estudados no capítulo relativo à participação do analista no processo analítico; entretanto, forçosamente muito é deixado a cargo da habilidade, presença de espírito e capacidade de concentração de cada um. Por isso, limitar-me-ei a ampliar o que já foi dito, acrescentando algumas observações sobre o intuito que deve presidir à interpretação.

               Quando uma pessoa pára de associar e começa a examinar suas anotações, com o fim de compreendê-las, seu método de trabalho deve mudar: em lugar de ficar inteiramente passiva e receptiva ante tudo o que aparecer, tornar-se ativa. Agora, o raciocínio dela entra em ação. Prefiro exprimir isso, entretanto, de forma negativa: ela não mais exclui o raciocínio, pois mesmo agora ela não o emprega com exclusividade. É difícil descrever exatamente a atitude que deve ser adotada ao procurar apreender o significado de uma série de associações. Por certo, o processo não deve degenerar em um mero exercício intelectual. Se quiser isso, será melhor jogar xadrez, prever a evolução da política mundial, ou dedicar-se a palavras cruzadas. Um esforço para conceber interpretações perfeitamente escorreitas, sem perder nenhuma conotação possível, talvez gratifique-lhe a vaidade, demonstrando a superioridade de sua inteligência, mas dificilmente o levará mais próximo de uma verdadeira compreensão de si mesma. Um esforço assim chega mesmo a oferecer algum perigo, pois pode impedir o progresso ao produzir uma confortável impressão de “eu-sei-tudo”, enquanto, de fato, ela apenas catalogou dados isolados sem ter sido tocada por coisa alguma.

O outro extremo, um “insight” meramente emocional, é bem mais valioso. Se não for posteriormente aperfeiçoado, tampouco é o ideal a atingir, porquanto deixa fugir muitas pistas significativas, malgrado não estejam ainda nítidas de todo. Mas, consoante vimos na análise de Clara, um “insight” deste gênero pode pôr alguma coisa em marcha. No início do trabalho, ela teve uma sensação intensa de estar extraviada, decorrente do sonho com a cidade estrangeira; foi mencionado, então, que embora seja impossível verificar se essa experiência emocional teve qualquer repercussão ulterior na análise, a inquietação resultante pode ter afrouxado o tabu rígido que ela possuía face aos vínculos complexos que a prendiam a Peter. Outro caso ocorreu durante a batalha final de Clara contra sua dependência, quando sentiu sua franca resistência a governar a própria vida; ela, então, não tinha a menor noção intelectual do significado deste “insight” emocional, e, no entanto, ajudou-a a sair de um estado de impotência letárgica.

               Em vez de desejar produzir uma obra-prima científica, a pessoa que está trabalhando sozinha deve deixar sua interpretação ser dirigida por seu interesse. Deve simplesmente ir em pró daquilo que lhe atrai a atenção, que lhe desperta a curiosidade, que toca uma corda emocional em seu íntimo. Se for suficientemente flexível para deixar-se guiar por seu interesse espontâneo, pode ficar razoavelmente certa de que intuitivamente escolherá os assuntos que, no momento, lhe forem mais acessíveis à compreensão, ou que se enquadrarão no problema em que ela estiver trabalhando.

Presumo que este conselho suscitará algumas dúvidas. Não estarei advogando uma excessiva tolerância? Será que o interesse do indivíduo não o levará a escolher assuntos com os quais está familiarizado? Não significará isto ceder ante as resistências? Examinarei em um capítulo à parte como lidar com as resistências; basta dizer, aqui, que é verdade que deixar-se levar pelos próprios interesses significa adotar o caminho de menor resistência. Mas, a menor resistência não quer dizer a mesma coisa que nenhuma resistência. O princípio significa, essencialmente, a busca dos assuntos que, no momento, são os menos reprimidos. E é este, exatamente, o princípio que o analista aplica quando apresenta suas interpretações. Ele, como já foi salientado, escolhe para interpretar os fatores que, segundo crê, o paciente pode apreender perfeitamente na ocasião, e renuncia a aventurar-se por problemas que ainda estão muito reprimidos.

Toda a auto-análise de Clara ilustra a validade deste procedimento. Aparentemente sem querer, nunca se deu ao trabalho de atacar nenhum problema que não evocasse uma reação nela, mesmo que estivesse praticamente “na cara”. Sem nada saber acerca do princípio de orientação pelo interesse, intuitivamente o aplicou através de todo seu trabalho, e isso foi-lhe muito útil. Um exemplo pode representar muito. Na série de associações que concluiu com o primeiro aparecimento do devaneio sobre o grande homem, Clara identificou somente o papel desempenhado em sua relação pela necessidade de proteção. As sugestões referentes a suas outras expectativas dos homens, foram por ela postas de lado inteiramente, malgrado fossem óbvias e se destacassem no devaneio. Esta escolha intuitiva levou-a a adotar a melhor linha de ação possível. Ela absolutamente não avançou por terreno conhecido: a descoberta de que a necessidade de proteção era parte integrante de seu “amor”, foi uma descoberta de um fator até então desconhecido. Outrossim, conforme deve estar ainda na lembrança do leitor, esta descoberta constitui a primeira incursão contra sua ilusão querida de “amor”, o que foi, por si mesmo, um passo penoso e incisivo. Tomar, ao mesmo tempo, o problema agravante de sua atitude parasitária com relação aos homens, teria sido certamente por demais árduo, a menos que o tratasse de forma superficial. Isto leva-nos a um último pormenor: não é possível absorver mais do que um “insight” importante de cada vez. A tentativa de fazê-lo será nociva a ambos, ou a todos eles. Qualquer “insight” relevante requer tempo e concentração total, para que possa “assentar” e enraizar-se.

A compreensão de uma série de associações exige flexibilidade, não só na direção do trabalho, como acabamos de ver, mas também no modo de abordar. Por outras palavras, na seleção de problemas a gente deve orientar-se pelos interesses emocionais espontâneos, bem como pela inteligência; também no estudo dos problemas que aparecem, deve-se passar com facilidade do pensamento deliberado para a apreensão intuitiva das ligações. Este último requisito pode ser comparado à atitude necessária quando se estuda uma pintura: pensamos a respeito da composição, da combinação de cores, das pinceladas e de coisas do mesmo jaez, mas também levamos em conta as reações emocionais provocadas em nós pela pintura. Isto corresponde, igualmente, à atitude que o analista adota face às associações de um paciente. Enquanto estou escutando o que o paciente me diz, às vezes medito intensamente sobre possíveis significados, chegando a uma conjetura só por deixar a conversa do paciente agir sobre minhas faculdades intuitivas. A verificação de qualquer conclusão, contudo, não importa como se tenha chegado a ela, sempre impõe completa atenção intelectual.

Uma pessoa pode achar, naturalmente, que em uma série de associações nada lhe desperta o interesse em particular; ela apenas vê uma ou outra possibilidade, mas nada de esclarecedor. Ou, no extremo oposto, pode achar que mesmo que se detenha em uma conexão, certos outros elementos também a impressionam. Em ambos os casos, será bom que anote à margem as questões deixadas em suspenso. Talvez no futuro, ao recapitular suas anotações, as possibilidades meramente teóricas tenham algum significado para ela, ou as perguntas guardadas possam ser agora examinadas em maior detalhe.

Há, ainda, um último escolho a ser citado: nunca aceite mais do que você pode acreditar deveras. Este perigo é maior na análise regular, especialmente se o paciente é daqueles que tendem a concordar com afirmações peremptórias. Mas também pode desempenhar um papel quando a pessoa confia em seus próprios recursos. Ela pode sentir-se obrigada, por exemplo, a aceitar o que quer que de “mau” surja a seu respeito, e a desconfiar de uma “resistência” caso hesite em fazê-lo. Ficará mais garantida, porém, se encarar sua interpretação como simples tentativa, sem procurar convencer-se de que é definitiva. A essência da análise é a verdade, e isto deve aplicar-se igualmente à aceitação ou não das interpretações.

O perigo de fazer uma interpretação desorientadora, ou pelo menos improfícua nunca pode ser eliminado, mas não se precisa temer isso excessivamente. Se a pessoa não baqueia, mas prossegue dentro da mentalidade certa, mais cedo ou mais tarde aparecerá uma trilha mais proveitosa, ou então se dará conta de estar em um beco sem saída e talvez até aprenda alguma coisa com essa experiência. Clara, por exemplo, antes de empenhar-se na análise de sua dependência, passará uns dois meses escavando à procura de uma suposta necessidade de impor sua vontade. Graças aos dados que surgiram posteriormente, podemos entender porque ela se deixou arrastar naquela direção. Ela me contou, todavia, que durante essas tentativas nunca tivera uma convicção nem de longe semelhante às que sentiu mais tarde, durante o período relatado. Ademais, a razão definitiva pela qual seguirá aquele caminho fora o fato de Peter censurá-la freqüentemente por ser dominadora. Isto ilustra dois pontos acima assinalados: a importância de seguir os próprios interesses, e a de não aceitar nada sem plena convicção. Conquanto esta busca inicial de Clara tenha se traduzido por um desperdício de tempo, deu em nada sem prejuízo algum, e não a impediu de realizar trabalho altamente construtivo mais tarde.

O caráter construtivo do trabalho de Clara deveu-se não só à conexão intrínseca das interpretações dela, mas igualmente ao fato de sua análise, naquele período, mostrar um notável grau de continuidade. Sem pretender concentrar-se em um problema – por longo tempo ela nem soube qual era – tudo em que ela se embrenhava acabava sendo uma contribuição para o problema de sua dependência. Esta constante concentração inconsciente em um único problema, que a levou a abordá-lo inexoravelmente de ângulos sempre novos, é conveniente, mas raramente conseguida na mesma medida. Podemos explicá-la, no caso de Clara, por estar ela vivendo, na época, sob uma pressão formidável – cuja intensidade só reconheceu perfeitamente mais tarde – e, daí, inconscientemente, aplicar todas suas energias na resolução de problemas que contribuíam para esta. Uma situação assim compulsória não pode ser criada artificialmente; quanto mais absorvente for o interesse da pessoa em um problema, porém, tanto mais próxima desta será a concentração conseguida.

A auto-análise de Clara ilustra muito bem as três etapas examinadas no Cap. III: identificação de uma tendência neurótica, compreensão de suas implicações, e descobrimento de suas inter-relações com outras tendências neuróticas. Na análise de Clara, como sói ocorrer muitas vezes, as etapas recobriram-se até certo ponto: ela identificou muitas das implicações, antes de finalmente localizar a própria tendência. Tampouco fez qualquer esforço para executar qualquer etapa definida em sua análise: ela não se dispôs deliberadamente a descobrir uma tendência neurótica, nem examinou deliberadamente as ligações entre sua dependência e sua modéstia compulsiva. A identificação da tendência veio por si mesma; e, analogamente, os elos de conexão entre as duas tendências tornaram-se cada vez mais visíveis, quase que automaticamente, à proporção que o trabalho analítico foi progredindo. Por outras palavras, Clara não escolheu os problemas – pelo menos conscientemente – mas os problemas vieram a ela, e ao se exibirem revelaram uma continuidade orgânica.

Houve, na análise de Clara, uma continuidade de outra espécie, ainda mais importante, e mais possível de ser emulada; em nenhum momento houve qualquer “insight” que ficasse isolado ou desligado. O que vimos desenvolver-se, não foi um acúmulo de “insights”, mas sim uma configuração estrutural. Mesmo que cada “insight” de per si, que o indivíduo obtenha esteja certo, ele ainda pode privar-se dos maiores benefícios do trabalho se os “insights” permanecerem dispersos.

Portanto, Clara, após reconhecer que se deixará afundar na desgraça porque secretamente acreditava que com isso poderia obter ajuda, podia ter-se  limitado a localizar a origem dessa tendência na infância e a encará-la como uma crença infantil persistente. Isso talvez lhe ajudasse um pouco, por que ninguém gosta realmente de ser desgraçado sem uma boa razão; na vez seguinte em que se visse sucumbindo ante uma crise de desgraça, talvez se sentisse desprevenida. Mas, na melhor hipótese, essa sua maneira de tratar o “insight” teria diminuído, com o passar do tempo, os ataques flagrantes de infelicidade exagerada. E esses ataques não eram a expressão mais importante da tendência. Ou então, ela poderia não ter ido além da etapa seguinte, de ligar sua descoberta com sua real falta de agressividade e de reconhecer que sua crença em ajuda mágica podia substituir uma forma ativa de enfrentar as dificuldades da vida. Isto, embora ainda inadequado, teria auxiliado bem mais, porque teria aberto um novo incentivo para pôr fim a toda atitude de impotência que se ocultava por detrás daquela crença. Mas, se ela não tivesse associado a crença na ajuda mágica com sua dependência, e visto uma como parte integrante da outra, não teria podido superar completamente a crença, porque faria sempre a restrição inconsciente de que se ao menos pudesse encontrar o “amor” permanente, sempre poderia contar com ajuda. Foi só porque viu essa conexão, e reconheceu a falácia de uma tal expectativa e o tremendo preço que tinha de pagar por ela, que a introvisão teve o efeito radicalmente libertador.

Assim, não é absolutamente uma questão puramente de interesse teórico uma pessoa descobrir como um traço de personalidade está implantado em sua estrutura, com múltiplas raízes e efeitos; também é da máxima importância terapêutica. Este requisito pode ser expresso em termos familiares de dinâmica: é preciso conhecer-se a dinâmica de uma tendência antes de poder mudá-la. Mas, esta palavra é como uma moeda que com o uso vai ficando fina e um tanto gasta. Além do mais, sugere comumente a idéia de forças impulsoras, e pode ser interpretada aqui como significando que se deve apenas procurar essas forças, quer nos primeiros anos da infância quer no presente. Neste caso, a noção de dinâmica seria enganosa, porquanto a influência que uma tendência exerce na totalidade da personalidade é tão importante quanto os fatores que determinam sua existência.

Não é de modo algum somente em questões psicológicas que é essencial esta percepção das inter-relações estruturais. As considerações por mim salientadas aplicam-se com o mesmo  peso, por exemplo, às questões de doença orgânica. Nenhum bom médico considerará uma doença do coração como um fenômeno isolado. Ele também levará em conta como o coração é influenciado por outros órgãos, como os rins e os pulmões. E ele deve saber que o estado do coração, por sua vez, afeta outros sistemas do corpo: por exemplo, a circulação do sangue ou o trabalho do fígado. Seu conhecimento das influências dessa ordem irão auxiliá-lo a entender a intensidade da perturbação.

Se é assim essencial, no trabalho analítico, não perder-se em detalhes dispersos, como se pode conseguir a desejada continuidade? Teoricamente, a resposta está implícita nos parágrafos precedentes. Se uma pessoa fez uma observação pertinente ou conseguiu um “insight”, deve examinar como a peculiaridade desvendada manifesta-se em várias áreas, quais as suas conseqüências e quais os fatores de sua personalidade por ela responsáveis. Isto, porém, pode ser encarado como uma afirmação assaz imaginária. Deve-se ter em mente, entretanto, que qualquer exemplo sumário necessariamente dá a impressão de uma clareza e simplicidade que na realidade não existem. Ademais, um exemplo desses, destinado a mostrar a variedade de fatores a serem identificados, não pode indicar as experiências emocionais que a pessoa tem ao analisar-se e, por conseguinte, só dá uma imagem unilateral e supra-racionalizada.

Tendo em mente estas restrições, suponhamos uma pessoa que observou que, em dadas situações em que gostaria de participar de discussões, fica com a língua presa porque receia as possíveis críticas. Se ela permitir esta observação arraigar-se em si, começará a matutar acerca do receio em questão, visto como não é proporcional a qualquer risco real. Pensará por que o medo é tão grande que lhe impede não só de exprimir suas idéias, mas também de pensar claramente. Perguntar-se-á se o medo é maior do que sua ambição, e se é maior do que quaisquer considerações de ordem prática, que, pelo bem de sua carreira, tornem conveniente causar uma boa impressão.

Tendo obtido assim um interesse pelo problema, procurará verificar se dificuldades semelhantes fazem-se sentir em outros setores de sua vida e, em caso afirmativo, de que forma se revestem. Examinará suas relações com mulheres: será que ele é tímido demais para aproximar-se delas receando que encontrem defeitos nele? E que dizer de sua vida sexual? Esteve impotente durante algum tempo por não poder esquecer-se de um insucesso? Reluta em ir a festas? Como é que age quanto a compras? Dá gorjetas exageradas porque teme que, de outra forma, o vendedor o considere sovina? Ainda mais, quão vulnerável é ele exatamente com relação a críticas? O que basta para deixá-lo embaraçado ou para fazê-lo sentir-se melindrado? Ele fica magoado quando sua esposa critica abertamente sua gravata ou fica incomodado quando ela apenas elogia João por combinar sempre a gravata com as meias?

Essas considerações dar-lhe-ão uma impressão da intensidade e extensão de sua dificuldade e de suas várias manifestações. Quererá saber, então, como é que ela afeta sua vida. Já sabe que o deixa inibido em muitos setores. Ele não pode afirmar-se; é muito complacente com o que os outros esperam dele; portanto, nunca pode ser ele mesmo, mas sim tem que desempenhar automaticamente um certo papel. Isto o deixa ressentido contra os demais, pois parecem dominá-lo, além de rebaixar seu amor-próprio.

Finalmente, procura os fatores responsáveis pela dificuldade. O que o deixou tão receoso de críticas? Pode recordar-se de que seus pais fizeram-no apegar-se a padrões muito severos, e pode lembrar-se de uma série de incidentes em que foi repreendido ou em que o fizeram sentir-se deslocado. Mas também terá de pensar em todos os pontos fracos de sua verdadeira personalidade que, em sua totalidade, tornam-no dependente dos outros e, por isso, fazem-no considerar a opinião que fazem dele como da máxima importância. Se puder encontrar respostas para todas essas perguntas, seu reconhecimento de que teme as críticas não mais será um “insight” isolado, mas verá a relação deste traço com toda a estrutura de sua personalidade.

Pode bem ser perguntado se com este exemplo eu quero dizer que uma pessoa que haja descoberto um novo fator deve deliberadamente esquadrinhar suas experiências e seus sentimentos das várias maneiras indicadas. Por certo que não, pois um procedimento desses envolveria o mesmo perigo de um domínio meramente intelectual, que já foi discutido. Pelo contrário, ela deve assegurar-se um período de contemplação. Deve meditar sobre sua descoberta mais ou menos da forma que um arqueólogo que descobriu uma estátua enterrada, muito mutilada, olha seu tesouro de todos os ângulos até que as formas originais revelem-se à sua mente. Qualquer fator novo que a pessoa identifique é como a luz de um projetor voltada para certos domínios de sua vida, iluminando pontos que até então haviam permanecido no escuro. Ele quase que é obrigado a vê-los, se ao menos estiver verdadeiramente interessado em conhecer-se. Este são pontos em que a orientação de um especialista seria particularmente útil. Nessas ocasiões, um analista ajudaria efetivamente o paciente a ver o significado da descoberta, fazendo uma ou outra pergunta sugerida por ela e ligando-a a descobertas anteriores. Quando não se dispõe de um auxílio exterior desses, a melhor coisa a fazer é abster-se de prosseguir correndo na análise, recordando que um novo “insight” significa a conquista de território novo, e procurando beneficiar-se dessa conquista consolidando a vantagem obtida. Em cada um dos exemplos dados no capítulo sobre auto-análise esporádica, citei perguntas que poderiam ter sido lembradas pelo “insight” obtido. Podemos estar bem certos de que a razão pela qual as pessoas interessadas não atinaram com essas perguntas, foi somente por ter o seu interesse acabado com o afastamento de suas dificuldades imediatas.

Se perguntássemos a Clara como foi que conseguiu tão notável continuidade em sua análise, provavelmente ela daria a mesma resposta dada por uma boa cozinheira quando lhe é pedida uma receita: a resposta, em suma, é que segue seu “instinto”. No caso da análise, contudo, essa resposta não é tão satisfatória como no de um omelete. Ninguém pode tomar por empréstimo os “instintos” de Clara, mas todos possuem seus “instintos” próprios pelos quais se podem guiar. E isto traz-nos de volta a algo que foi discutido acima, ao tratarmos da interpretação de associações: é útil ter uma noção daquilo que se está procurando, mas a procura deve ser dirigida pela iniciativa e pelo interesse da própria pessoa. Deve-se aceitar o fato de que se é um ser humano, movido por necessidade.