Curso Livre de Capacitação em Psicanálise
SPOB-POLO/RS
Marilena Chauí
Freud
escreveu que, no transcorrer da modernidade, os humanos foram feridos três
vezes e que as feridas atingiram o nosso narcisismo*, isto é, a bela
imagem que possuíamos de nós mesmos como seres conscientes racionais e com a
qual, durante séculos, estivemos encantados.
Que feridas foram essas?
A primeira foi a que nos
infligiu Copérnico, ao provar que a Terra não estava no centro do Universo e que os homens não eram o centro do
mundo. A segunda foi causada por Darwin,
ao provar que os homens descendem de um primata, que são apenas um elo na
evolução das espécies e não seres especiais, criados por Deus para dominar a
Natureza. A terceira foi causada por
Freud com a psicanálise, ao mostrar que a consciência é a menor parte e a mais
fraca de nossa vida psíquica.
Na
obra Cinco ensaios sobre a psicanálise, Freud escreve:
A Psicanálise
propõe mostrar que o Eu não somente não é senhor na sua própria casa, mas
também está reduzido a contentar-se com informações raras e fragmentadas
daquilo que se passa fora da consciência, no restante da vida psíquica... A divisão do psíquico num psíquico consciente e
num psíquico inconsciente constitui a premissa fundamental da psicanálise, sem
a qual ela seria incapaz de compreender os processos patológicos, tão
freqüentes quanto graves, da vida psíquica e fazê-los entrar no quadro da
ciência... A psicanálise se recusa a considerar a consciência como constituindo
a essência da vida psíquica, mas nela vê apenas uma qualidade desta, podendo
coexistir com outras qualidades e até mesmo faltar.
A psicanálise
Freud
era médico psiquiatra. Seguindo os
médicos de sua época, usava a hipnose e a sugestão no tratamento dos doentes
mentais, mas sentia-se insatisfeito com os resultados obtidos.
Certa
vez, recebeu uma paciente, Ana O., que apresentava sintomas de
histeria, isto é, apresentava distúrbios físicos (paralisias,
enxaquecas, dores de estômago) sem que houvesse causas físicas para eles, pois
eram manifestações corporais de problemas psíquicos.
Em
lugar de usar a hipnose e a sugestão, Freud usou um procedimento novo: fazia
com que Anna relaxasse num divã e falasse.
Dizia a ela
palavras soltas e pedia-lhe que dissesse a primeira palavra que lhe viesse à
cabeça ao ouvir a que ele dissera - posteriormente, Freud denominaria esse
procedimento de "técnica de associação livre".
Freud percebeu
que, em certos momentos, Anna reagia a certas palavras e não pronunciava aquela
que lhe viera à cabeça, censurando-a por algum motivo ignorado por ela e por
ele.
Notou
também que, em outras ocasiões, depois de fazer a associação livre de palavras,
Anna ficava muito agitada e falava muito. Observou que, certas vezes, algumas
palavras a faziam chorar sem motivo aparente e, outras vezes, a faziam
lembrar-se de fatos da infância, narrar um sonho que tivera na noite anterior.
Pela
conversa, pelas reações da paciente, pelos sonhos narrados e pelas lembranças
infantis, Freud descobriu que a vida consciente de Anna era determinada por uma
vida inconsciente, que tanto ela quanto ele desconheciam. Compreendeu também
que somente interpretando as palavras, os sonhos, as lembranças e os gestos de
Anna chegaria a essa vida inconsciente.
Freud
descobriu, finalmente, que os sintomas histéricos tinham três finalidades:
1.
contar
indiretamente aos outros e a si mesma os sentimentos inconscientes;
2.
punir-se
por ter tais sentimentos;
3.
realizar,
pela doença e pelo sofrimento, um desejo inconsciente intolerável.
Tratando
de outros pacientes, Freud descobriu que, embora conscientemente quisessem a
cura, algo neles criava uma barreira, uma resistência inconsciente à cura.
Por
quê? Porque os pacientes sentiam-se
interiormente ameaçados por alguma coisa dolorosa e temida, algo que haviam
penosamente esquecido e que não suportavam lembrar. Freud descobriu, assim, que
o esquecimento consciente operava simultaneamente de duas maneiras:
1.
como
resistência à terapia;
2.
sob a forma
da doença psíquica, pois o inconsciente não esquece e obriga o esquecido a
reaparecer sob a forma dos sintomas da neurose e da psicose.
Desenvolvendo
com outros pacientes e consigo mesmo esses procedimentos e novas técnicas de
interpretação de sintomas, sonhos, lembranças, esquecimentos, Freud foi criando
o que chamou de análise da vida psíquica ou psicanálise, cujo objeto central
era o estudo do inconsciente e cuja finalidade era a cura de neuroses e
psicoses, tendo como método a interpretação e como instrumento a linguagem
(tanto a linguagem verbal das palavras quanto a linguagem corporal dos sintomas
e dos gestos).
A vida psíquica
Durante
toda sua vida, Freud não cessou de reformular a teoria psicanalítica,
abandonando alguns conceitos, criando outros, abandonando algumas técnicas
terapêuticas e criando outras. Não
vamos, aqui, acompanhar a história da formação da psicanálise, mas apresentar
algumas de suas principais idéias e inovações.
A
vida psíquica é constituída por três instâncias, duas delas inconscientes e
apenas uma consciente: o id, o superego e o ego (ou o isso,
o super-eu e o eu). Os
dois primeiros são inconscientes; o terceiro, consciente.
O
id é formado por instintos, impulsos orgânicos e desejos inconscientes, ou
seja, pelo que Freud designa como pulsões.
Estas são regidas pelo princípio do prazer, que exige
satisfação imediata. O id é a
energia dos instintos e dos desejos em busca da realização desse princípio do prazer. É a libido. Instintos, impulsos e desejos, em suma,
as pulsões, são de natureza sexual e a sexualidade não se reduz ao ato
sexual genital, mas a todos os desejos que pedem e encontram satisfação na
totalidade de nosso corpo.
Freud
descobriu três fases da sexualidade humana que se diferenciam pelos órgãos que
sentem prazer e pelos objetos ou seres que dão prazer.
Essas
fases se desenvolvem entre os primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos, ligadas
ao desenvolvimento do id:
1.
a fase oral, quando
o desejo e o prazer localizam-se primordialmente na boca e na ingestão de
alimentos e o seio materno, a mamadeira, a chupeta, os dedos são objetos do
prazer;
2.
a fase anal, quando
o desejo e o prazer localizam-se primordialmente nas excreções e as fezes,
brincar com massas e com tintas, amassar barro ou argila, comer coisas
cremosas, sujar-se são os objetos do prazer;
3.
e a fase
genital ou fase fálica, quando o desejo e o prazer localizam-se
primordialmente nos órgãos genitais e nas partes do corpo que excitam tais
órgãos. Nessa fase, para os meninos, a mãe é o objeto do desejo e do prazer;
para as meninas, o pai.
No
centro do id, determinando toda a vida psíquica, encontra-se o que Freud
denominou de complexo de Édipo, isto é, o desejo incestuoso pelo pai ou
pela mãe. É esse o desejo fundamental que organiza a totalidade da vida
psíquica e determina o sentido de nossas vidas.
O superego,
também inconsciente, é a censura das pulsões que a sociedade e a cultura impõem
ao id, impedindo-o de satisfazer plenamente seus instintos e desejos. É
a repressão, particularmente a sexual. Manifesta-se à consciência
indiretamente, sob a forma da moral, como um conjunto de interdições e de
deveres, e por meio da educação, pela produção da imagem do "eu
ideal" isto é, da pessoa moral, boa o virtuosa. O superego ou
censura desenvolve-se num período que Freud designa como período de
latência, situado entre os 6 ou 7 anos e o início da puberdade ou adolescência.
Nesse período, forma-se nossa personalidade moral e social, de maneira que,
quando a sexualidade genital ressurgir, estará obrigada a seguir o caminho
traçado pelo superego.
O ego ou
o eu é a consciência, pequena parte da vida psíquica, submetida aos
desejos do id e à repressão do superego. Obedece ao princípio
da realidade, ou seja, à necessidade de encontrar objetos que possam
satisfazer ao id sem transgredir as exigências do superego.
O ego,
diz Freud, é "um pobre coitado", espremido entre três escravidões:
1.
os desejos
insaciáveis do id,
2.
a severidade
repressiva do superego
3.
e os perigos do
mundo exterior.
Por esse motivo,
a forma fundamental da existência para o ego é a angústia. Se se submeter ao id, torna-se
imoral e destrutivo; se se submeter ao superego, enlouquece de
desespero, pois viverá numa insatisfação insuportável; se não se submeter à
realidade do mundo, será destruído por ele.
Cabe ao ego
encontrar caminhos para a angústia existencial. Estamos divididos entre o princípio
do prazer (que não conhece limites) e o princípio da realidade (que
nos impõe limites externos e internos).
Ao ego-eu,
ou seja, à consciência, é dada uma função dupla: ao mesmo tempo recalcar o
id, satisfazendo o superego, e satisfazer o id, limitando
o poderio do superego. A vida consciente normal é o equilíbrio
encontrado pela consciência para realizar sua dupla função.
A loucura
(neuroses e psicoses) é a incapacidade do ego para realizar sua dupla
função, seja porque o id ou o superego são excessivamente fortes,
seja porque o ego é excessivamente fraco.
O inconsciente,
em suas duas formas, está impedido de manifestar-se diretamente à consciência,
mas consegue fazê-lo indiretamente. A
maneira mais eficaz para a manifestação é a substituição, isto é, o
inconsciente oferece à consciência um substituto aceitável por ela e por meio do
qual ela pode satisfazer o id ou o superego. Os substitutos são
imagens (isto é, representações analógicas dos objetos do desejo) e formam o
imaginário psíquico, que, ao ocultar e dissimular o verdadeiro desejo, o
satisfaz indiretamente por meio de objetos substitutos (a chupeta e o dedo,
para o seio materno; tintas e pintura ou argila e escultura para as fezes, uma
pessoa amada no lugar do pai ou da mãe).
Além dos
substitutos reais (chupeta, argila, pessoa amada), o imaginário inconsciente
também oferece outros substitutos, os mais freqüentes sendo os sonhos, os
lapsos e os atos falhos. Neles, realizamos desejos inconscientes, de natureza
sexual. São a satisfação imaginária do desejo.
Alguém sonha,
por exemplo, que sobe uma escada, está num naufrágio ou num incêndio. Na
realidade, sonhou com uma relação sexual proibida. Alguém quer dizer uma
palavra, esquece-a ou se engana, comete um lapso e diz uma outra que nos
surpreende, pois nada tem a ver com aquela que se queria dizer. Realizou um desejo proibido. Alguém vai
andando por uma rua e, sem querer, torce o pé e quebra o objeto que estava
carregando. Realizou um desejo proibido.
A vida psíquica
dá sentido e coloração afetivo sexual a todos os objetos e a todas as pessoas
que nos rodeiam e entre os quais vivemos. Por isso, sem que saibamos por que,
desejamos e amamos certas coisas e pessoas, odiamos e tememos outras. As coisas
e os outros são investidos por nosso inconsciente com cargas afetivas de
libido.
É por esse
motivo que certas coisas, certos sons, certas cores, certos animais,
certas situações nos enchem de pavor, enquanto outros nos enchem de bem-estar,
sem que o possamos explicar. A origem
das simpatias e antipatias, amores e ódios, medos e prazeres está em nossa mais
tenra infância, em geral nos primeiros meses e anos de nossa vida, quando se
formam as relações afetivas fundamentais e o complexo de Édipo.
Essa dimensão
imaginária de nossa vida psíquica - substituições, sonhos, lapsos, atos falhos,
prazer e desprazer com objetos e pessoas, medo ou bem-estar com objetos ou
pessoas - indica que os recursos inconscientes para surgir indiretamente à
consciência possuem dois níveis:
-
o nível do conteúdo
manifesto (escada, mar e incêndio, no sonho; a palavra esquecida e a
pronunciada, no lapso; pé torcido ou objeto partido, no ato falho; afetos
contrários por coisas e pessoas)
-
e o nível do
conteúdo latente, que é o conteúdo inconsciente real e oculto (os desejos
sexuais).
Nossa vida
normal se passa no plano dos conteúdos manifestos e, portanto, no imaginário. Somente uma análise psíquica e psicológica
desses conteúdos, por meio de técnicas especiais (trazidas pela psicanálise),
nos permite decifrar o conteúdo latente que se dissimula sob o conteúdo
manifesto.
Além
dos recursos individuais cotidianos; que nosso inconsciente usa para
manifestar-se, e além dos recursos extremos e dolorosos usados na loucura
(nela, os recursos são os sintomas), existe um outro recurso, de enorme
importância para a vida cultural e social, isto é, para a existência coletiva. Trata-se do que Freud designa com o nome de sublimação.
Na
sublimação, os desejos inconscientes são transformados em uma outra
coisa, exprimem-se pela criação de uma outra coisa: as obras de arte, as
ciências, a religião, a filosofia, as técnicas, as instituições sociais e as
ações políticas. Artistas, místicos, pensadores, escritores, cientistas,
líderes políticos satisfazem seus desejos pela sublimação e, portanto, pela
realização de obras e pela criação de instituições religiosas, sociais, políticas,
etc.
Porém,
assim como a loucura é a impossibilidade do ego para realizar sua dupla
função, também a sublimação pode não ser alcançada e, em seu lugar, surgir uma perversão
social ou coletiva, uma loucura social ou coletiva. O nazismo é um exemplo de perversão,
em vez de sublimação. A propaganda, que induz em nós falsos desejos sexuais
pela multiplicação das imagens de prazer, é outro exemplo de perversão ou de
incapacidade para a sublimação.
O
inconsciente, diz Freud, não é o subconsciente.
Este é aquele grau da consciência como consciência passiva e consciência
vivida não-reflexiva, podendo tornar-se plenamente consciente. O inconsciente,
ao contrário, jamais será consciente diretamente, podendo ser captado apenas
indiretamente e por meio de técnicas especiais de interpretação desenvolvidas
pela psicanálise.
A
psicanálise descobriu, assim, uma poderosa limitação às pretensões da
consciência para dominar e controlar a realidade e o conhecimento. Paradoxalmente, porém, nos revelou a capacidade
fantástica da razão e do pensamento para ousar atravessar proibições e
repressões e buscar a verdade, mesmo que para isso seja preciso desmontar a
bela imagem que os seres humanos têm de si mesmos.
Longe
de desvalorizar a teoria do conhecimento, a psicanálise exige do pensamento
que não faça concessões às idéias estabelecidas, à moral vigente, aos
preconceitos e às opiniões de nossa sociedade, mas que os enfrente em nome da
própria razão e do pensamento.
A
consciência é frágil, mas é ela que decide e aceita correr o risco da angústia
e o risco de desvendar e decifrar o inconsciente. Aceita e decide enfrentar a
angústia para chegar ao conhecimento de que somos um caniço pensante, como
disse o filósofo Pascal.
* Conta o mito que o jovem Narciso, belíssimo, nunca
tinha visto sua própria imagem. Um dia, passeando por um bosque, viu um lago.
Aproximou-se e viu nas águas um jovem de extraordinária beleza e pelo qual
apaixonou-se perdidamente. Desejava que o outro saísse das águas e viesse ao
seu encontro, mas como o outro parecei recusar-se a sair do lago, Narciso
mergulhou nas águas, foi às profundezas à procura do outro que fugia, morrendo
afogado. Narciso morreu de amor por si mesmo, ou melhor, de amor por sua
própria imagem ou pela auto-imagem. O narcisismo é o encantamento e a paixão
que sentimos por nossa própria imagem ou por nós mesmos porque não conseguimos
diferenciar o eu e o outro.
(Fonte: Filosofia, Ed. Ática, São Paulo, ano 2000, pág. 83-87)
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