INSTITUTO FREIDIANO DE ESTUDOS PSICANALÍTICOS

segunda-feira, 23 de junho de 2014

A psicanálise é uma arte


*Se há empreitada que realmente não é fácil de se realizar é analisar, ou melhor, psicanalisar, desmontamos, componente por componente, o conjunto que é o paciente que se senta na nossa frente. Somos terapeutas, quando, integralmente, respondemos às expectativas daquele ser que nos buscou no consultório, com queixas que podem variar entre um “não consigo arranjar um namorado!”, passando por “Estou sentindo um medo, não sei de quê!”, até um vastíssimo sentimento de culpa por ter concordado com o desligamento de todo um equipamento que mantinha respirando alguém num quadro de morte cerebral.
*Há um problema inicial que surge quando se faz psicanálise, mas que, na verdade, não é dos mais graves: acontece, em quase 100% das vezes, que o nosso paciente nos busca, trazendo na ponta da língua um auto-diagnóstico, residindo o problema, no fato de que é a nós que compete o diagnóstico, que se delineará quando tivermos identificado a patologia. Resume-se a situação dizendo-se que o paciente chega buscando a cura, enquanto nós o abordamos buscando uma doença... Há até aqueles que sugerem terapias, indicando aconselhamentos, hipnose, relaxações. Quando isso acontece, há que se ser firme nas sondagens (ensaios) referentes à capacidade de associar, de aceitar as interpretações, com o fim de, com diplomacia e habilidade, patentear que há uma fundamentação técnica nos nossos procedimentos e que, em nenhum momento, prevalecerá, no consultório, o princípio do bom-senso.
*Vencida essa primeira batalha, passa-se ao que se fará até a alta: interpreta-se, vez que o nosso ofício é interpretar, pelo que, a nós tudo interessa: atitudes como a de orientar o psicanalista, as frases, o tom de voz, as posturas, a pontualidade, os atrasos de toda ordem, as roupas, perfumes, tudo! Tudo, mas com habilidade, para não transformar a sessão num sarau, numa troca de opiniões, num momento de desfrute, num encontro prazeroso, já que Psicanálise é trabalho, trabalho de garimpagem de tudo o mais que nos sirva de indicadores, para se chegar à patologia, que sempre será diferente da definida pelo paciente, que será a ele apresentada, não por meio de palavras, mas de descobertas feitas por ele mesmo, em função de um processo a que chamamos de chegar ao insight.
*Uma forma muito proveitosa de se começar uma análise é, desde os primeiros momentos, formular-se perguntas que levem o paciente a uma introspecção, ma com respostas que não se limitem a um sim ou a um não. Este tipo de abordagem tem a vantagem de trazer, ao paciente, a idéia de prosseguimento no tratamento, vez que a introspecção o leva a focalizar-se no meio em que vive e a ver-se agindo e reagindo. Para tanto, não nos é lícito cobrar respostas ricas e sim formular-se perguntas que gerem respostas esclarecedoras. A propósito, nunca nos esqueçamos que todo paciente tem, durante quase todo o tempo, apenas um assunto: as pessoas com quem se relaciona, ou aquelas com quem deixou de se relacionar, daí a importância de levá-lo ao foco em si mesmo, que é o princípio do auto-conhecimento, no Nosce te ispum, cujo vislumbre, via de regra, é decisivo para a opção da psicanálise.
*No tópico anterior falamos de uma forma proveitosa de se começar uma análise, pelo que, convém que se diga que podemos dividir a psicanálise em três momentos: o do início, o do meio e o do término. O inicial é aquele em que as nossas interpretações, provindas das questões introspectivas, despertam no paciente cogitação a acerca do como será na próxima sessão? É a instalação de um processo que pode ser chamado de processo da continuidade da psicanálise, que é filho da introspecção. O do meio é marcado pelo surgimento da transferência, muito especialmente, quando o analista é o alvo do fenômeno. O momento do término, é aquele em que se evidenciam marcantes alterações indicadoras de cura, referida à queixa inicial. É um momento que quase nunca é comemorado pelo paciente, fez que ele simultaneamente à consolidação da cura, começa, ainda que inconscientemente, a viver um quadro de separação. É aí que se recapitula a patologia identificada e todo o trabalho em que ambos se empenharam para neutralizá-la, confirmando-se, destarte, a cura.
*Há algo que se quer, nesta obra, deixar-se bem nítido nas mentes dos Colegas em formação: é o fato de exigir a Psicanálise, da parte do analista, atenção, muita atenção, especialmente quando está ouvindo no seu consultório, mas fazendo-o de tal forma, que não impeça que suas próprias fantasias e lembranças fluam livremente enquanto ouve, sem deixar, entretanto, de examinar cuidadosamente, à luz dos seus conhecimentos teóricos, todo o material produzido, antes de transmitir ao paciente as suas interpretações. É neste ponto que aparece mais um cuidado a ser observado: se é verdade que se deve ter uma mente treinada, plena de conhecimentos teóricos, é também verdade, que um bom psicanalista será aquele que souber, com senso de oportunidade, emoldurar a técnica com empatia intuição.
*Sobre empatia, transcreve-se para cá, um comentário de Ralph Greenson:
A capacidade para a empatia é fundamental para uma boa disposição psicológica e depende da capacidade para uma identificação parcial e temporária com outros. Ele é necessária para uma comunicação eficaz entre paciente e analista e deve estar presente em ambos. As pessoas retraídas e emocionalmente desinteressadas não são boas candidatas à prática psicanalítica.
*A esta altura cabe uma observação: não se quer, com os comentários esquemáticos acima apresentados, passar para o colega em formação uma imagem de simplicidade da Psicanálise, pois isso seria uma leviandade, pois a psicanálise, conquanto seja chamada de ciência tanto por Freud, quanto por Nunberg e outros da estatura de ambos, é ela, incontestavelmente, uma arte e exatamente por ser arte, deparamo-nos, a todo momento, com graves dificuldades, já que nela influem fatores mais ou menos subjetivos do tipo acuidade mental, universalidade de conhecimentos, graus de sensibilidade, rapidez de raciocínio e outros não mensuráveis, mas que, na verdade, são determinantes de grandes diferenças nos resultados que se deseje alcançar. Seria mesmo uma leviandade, pois o que quer que esteja a produzir uma doença (do tipo que aparece nos nossos consultórios), é psíquico e absolutamente inconsciente, frase essa de Herman Nunberr, que com a sua autoridade, nos diz o quanto de surpreendentemente difícil, existe no ato de psicanalisar.
*Ainda aprendendo com Nunberg, é conveniente que se diga que, na prática psicanalítica, lidamos com o que não temos e isso é rigorosamente verdadeiro, vez que, na memória humana se formam lacunas onde tenha ocorrido algo de importante na vida do paciente, lacunas que se estendem até as fases mais precoces da infância. E a esse cenário cheio de descontinuidades, somam-se algumas lembranças que podem surgir aleatoriamente, sem qualquer ligação com o discurso do paciente, mas que, na verdade, são peças de um material que escaparam do inconsciente e que, como tal, se encaixarão, em algum momento, no quadro do grande quebra-cabeças em que cada paciente se constitui.
*A propósito de lacunas, Maud Manoni, no seu A primeira Entrevista em Psicanálise, nos diz algo muito que sendo delicado, é útil por ser judicioso com definição de neurose:
Nem todas as crianças conseguem se lembrar de tudo o que lhes aconteceu. É no perder as lembranças que podem surgir as neuroses.
*A cautela que transparece no conceito de Manoni se justifica, se atentarmos para um outro aspecto que nos é trazido por Nunberg:
A memória das experiências ligadas à doença pode estar preservada e consciente, enquanto que as conexões dessa experiência com o sintoma e portanto, também, o seu significado, permanecem inconscientes.
*E falando-se de conexões, é bom que tragamos a figura que Otto Fenichel usou para explicar o nosso ofício: comparou-nos, nós os psicanalistas, a bombeiros hidráulicos, já que ao seu ver, somos nós os encarregados de restabelecer conexões interrompidas... Para tanto é preciso arte, muita arte.
*Se há algo que é muito importante quando do exercício da Psicanálise, é uma visão responsável que leve o profissional, tanto o iniciante quanto o experimentado, a preparar-se para receber cada paciente, pois será o caso que em se tendo dois caracteres orais na agenda, ainda assim, a sintomatologia neurótica de cada um será fatalmente diversa.
*Há autores sérios, que sempre se referem às dificuldades do psicanalisar. Um deles é Jung, um mestre de Psicanálise que se tornou uma espécie de irmão separado, que ao falar das reações exteriorizadas pelos críticos alemães acerca da análise dos sonhos, nos deixou dito:
Mas não houve um psicólogo, neurologista ou psiquiatra que se tivesse dado ao trabalho de pôr à prova a sua acuidade mental na análise dos sonhos de Freud? Ou não tiveram coragem? Estou quase acreditando que ninguém teve coragem de fazê-lo, porque é realmente difícil, a meu ver, quanto ao aspecto intelectual e muito difícil sob o aspecto das resistências pessoais subjetivas. E é neste ponto que  a Psicanálise exige (...) um impiedoso auto-conhecimento. É preciso repetir sempre e de novo, que a compreensão teórica e prática da Psicanálise é uma função do auto-conhecimento analítico. Onde falta auto-conhecimento também não floresce a Psicanálise.
*Voltemos a Ralph Greenson para ouvi-lo a cerca do que se exige do psicanalista para compreender o Inconsciente, e consideremos o quanto de dificuldade há no que ele propõe como ideal:
A aptidão mais importante que o Psicanalista deve possuir é a sua habilidade para relacionar os pensamentos, sentimentos, fantasias e impulsos conscientes do paciente, com os seus antecedentes inconscientes. Deve ser capaz de sentir o que há por detrás dos vários assuntos de que fala o paciente no transcorrer da sessão. Algo como escutar a melodia e os temas da mão esquerda, o contraponto, ou o que é inconsciente. Ele há que reparar nos quadros fragmentados que o paciente pinta, sendo capaz de neles ver o modelo inconsciente original.
No tópico acima há muito de empatia e intuição. Segundo Greenson, empatia é uma função do Ego vivenciador, enquanto que a intuição é função do Ego observador. A empatia e a intuição são as bases do talento para agarrar os significados inconscientes por detrás do material inconsciente. Por isso mesmo, os psicanalistas hão que ter um bom estoque de ambas. A capacidade para a empatia é um requisito básico, vez que sem ela torna-se quase impossível desenvolver-se qualquer terapia eficiente de desvendamento. Já a capacidade para a intuição contribui para o exercício da sagacidade, mas que sem a empatia, será ilusória e por isso mesmo não confiável.
*Até agora falou-se com mais ênfase sobre aptidões, mas não se pode esquecer que o conhecimento teórico é o terceiro termo do trinômio, já que se encarrega de verificar dados, de contabilizar as evidências, de encontrar o significado do achado pela empatia, ou pela intuição, já que
o conhecimento teórico é, na verdade, um precipitado e um destilado de milhares de fatos clínicos e deve ser usado para o trabalho clínico se quisermos evitar o perigo de fazer psicanálise selvagem. A empatia e a intuição não podem ser ensinadas, mas um cientista tem que aprender o que é ensinável: o conhecimento teórico não é barreira pra terapia intuitiva, pelo contrário, é um pré-requisito indispensável”.
(Ralph Greenson se fundamentando em Sharpe e Fenichel. Ibidem, p.412).
*Freud, num rompante,nos fala das dificuldades do exercício da psicanálise, no seu Análise Terminável e Interminável (Imago, 1975), chamando de impossível a nossa profissão, alinhando o analisar ao lado de educar e governar, já que as três atividades requerem dedicação, intuição, empatia, auto-controle, capacidade de julgamento, prontidão de espírito etc., isso tudo unicamente porque Psicanálise é uma arte.


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