Daniel Delouya
Carrego meus primórdios
num andor.
Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas urinam na perna...
Manoel de Barros (1996),
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas urinam na perna...
Manoel de Barros (1996),
“Você
vai lá só para isso, só para falar?! Fale comigo, e faço isso (brincando) por
um terço do preço de seu analista.” Comentário, surpresa e risos de leigos que
ainda ressoam nos ambientes sociais de nosso tempo. “O leigo teria, certamente,
dificuldades em entender como é possível eliminar distúrbios da mente e do
corpo ‘tão-somente’ pelas palavras do médico” (Freud, 1890/2002). “Quer que eu
acredite em mágica?”, pergunta, atônito, o leigo de Freud. O leigo adivinhou,
afirma Freud, pois as palavras de nosso cotidiano “não são outra coisa senão um
feitiço que perdeu a sua eficácia”. Um “tratamento psíquico, tratamento da
alma” (título desse artigo de 1890) consiste, justamente, em afetar a alma por
meio de palavras, desde que a elas se devolva o seu poder originário de
feitiço.
Nenhum
de nós, pacientes e analistas experientes, escapa da surpresa desse poder
mágico das palavras ao serem proferidas seja por nós, seja pelo outro.Um efeito
que logo se esvai por detrás da consciência empírica do senso comum da vida da vigília.
Episódios como “Falei coisas que jamais pensei em dizer” ou “O que você falou
me tocou de tal modo” têm um efeito, por vezes, drástico e determinante para
manter a análise em curso, ou outra relação qualquer. A mesma surpresa
reemerge, do lado da analista, quando se dá conta do efeito de uma palavra que
emitiu. Ação mágica das palavras que é facilmente detectável em crianças quando
contestam com veemência – “Mas a minha mãe falou!” –, ou no adolescente – “Ela
falou e com isso quebrou minhas pernas” –, sem esquecer que uma palavra do
amante, ou do chefe, pode tanto transformar nosso estado de mente como levar
alguns a loucura e outros ao suicídio.
Todo
o esforço da nova ciência, segundo Freud, consiste em devolver às palavras o
seu poder mágico. E esse poder, continua ele, se origina na psique, na alma.
Não significa, necessariamente, que a alma é feita de palavras ou se estrutura
como linguagem, como alguns diriam mais tarde, mas que talvez exista algo na
alma que confira esse poder central às palavras. Cem anos mais tarde,André
Green (1983) reforçou essa missão freudiana, com outras palavras, ao dizer que
“cabe à análise tirar a palavra de seu luto”, desenlutá-la.
No
referido artigo de Freud, o caminho que ele toma é o de mostrar o efeito
hipnótico veiculado pela palavra. Porém, essa inferência é apressada e não o
tranqüiliza, pois, de um lado, a eficácia da palavra, tal como a desenhamos
acima, é atrelada a certa situação de transação intersubjetiva. Seria, então, o
estado hipnótico o responsável por conferir a elas seu poder mágico e
sugestivo? “Seria ótimo se assim fosse, mas a realidade é outra”, lamenta
Freud. Os pacientes resistem, por conta de elementos singulares, ainda obscuros
para ele. Por outro lado, a situação dessimétrica, entre o hipnotizador e o
hipnotizado, acena a Freud a analogia preciosa desse efeito com o estado
amoroso e passional, com a relação corriqueira entre médico e paciente, do
líder com a multidão, e essas com a relação mãe-bebê durante a qual a primeira
dispensa cuidados imprescindíveis ao último1.
Uma
obscuridade, ou melhor, uma tensão se instaura quanto à origem do poder das
palavras, entre a abertura dada pelo estado hipnótico e as singularidades do
sujeito. A resistência deste e sua suscetibilidade às palavras logo ocuparão um
lugar de destaque na técnica freudiana. Mas estamos ainda em 1890, quatro anos
após a volta de Paris, e um ano após a visita feita a Bernheim em Nancy, onde
Freud assiste à alucinação negativa do hipnotizado que coloca em relevo a
resistência e os elementos singulares na sujeição às palavras do médico.
Entretanto, estamos, também, em plena preparação de uma monografia sobre A
concepção das afasias (1891/1987), relacionada com o posto que Freud ocupa
desde sua volta de Paris no hospital de crianças com paralisias cerebrais.Nesse
livro, ele utiliza material de pacientes afásicos de vários pesquisadores, como
Broca, Wernike, Lichtheim, Bastian e, sobretudo, de Grashey, demolindo suas
hipóteses sobre a localização anatômica das funções de linguagem e as vias de
transação fisiológica entre esses centros, para resgatar uma natureza
“unicamente psicológica” das palavras, sem descartar a existência de uma matriz
biológica que a sustente. Contudo, as afasias descritas na literatura
permitem-lhe dissecar a palavra nas imagens interligadas que a compõem e suas
vias de conexão com as representações da coisa. Sabemos do poder dessa arquitetura
para a metapsicologia freudiana e para seu entendimento das psicoses, mais de
vinte anos depois, porém vale salientar, já neste momento histórico, a
descoberta psicológica de haver “imagens” nas palavras, pois a imagem ressoa
fortemente em qualquer magia, poder e efeito mágico. Nesse período, Freud está
mergulhado no tratamento do sofrimento psíquico, e sua paciente Von Emmy, da
qual ele cuida junto com Breuer desde 1887, é convocada à cena do livro de
1891, o que reforça a crença de muitos de que a construção do modelo nessa
monografia é nutrida pela clínica dos “doentes dos nervos”.
Retornaremos
a esse modelo mais tarde. Adiantamos que as palavras são dotadas, na trajetória
freudiana, de uma espécie de aliança de natureza hipnótica, mágica e, por fim,
alucinatória. Aqui, é preciso voltar à clínica. Muito cedo, em 1895, Freud nos
fornece uma hipótese fascinante sobre a origem da linguagem, tomando partido do
ataque histérico, concebido como figura da linguagem de um afeto (dificuldade
de “engolir alguma coisa” = insulto; dor como se “apunhalado no coração” =
menosprezo). Isso o levou a pensar numa fonte comum tanto à linguagem como ao
afeto, cujo protótipo seria o ataque histérico: se o estado afetivo é gerado
pela enervação motora e sua descarga, os sentimentos são a “percepção”
(interna) e a figuração dessa enervação, ação e descarga no largo escopo das
qualidades de prazer e desprazer. Apoiado em Darwin, o molde de tal inervação é
a via reflexa – uma reação, a semelhança do ataque histérico, e a inscrição
dessa experiência na pré-história da espécie, porque serviu à “preservação”.
Munir-se da “expressão das emoções” (Darwin) foi o modo de defender-se de um
perigo. De que modo? Justamente pela comoção do outro, pela “identificação”
deste com a dor e a angústia do bebê perante o assalto dos estímulos objetais,
sensoriais e pulsionais. Enervação, portanto, que é tributária de uma expressão
corporal que comunica (emoção & linguagem), convocando o outro próximo e
auxiliar (Nebenmensche). A “percepção” (linguagem & consciência) de afetos
seria a apropriação dessa ação específica proporcionada pelo adulto. Vemos,
então, por que Freud estipula no final do caso Elizabeth (1895/1974) uma origem
comum à linguagem e aos afetos e por que encontra no estado de nascimento o
protótipo da situação de perigo (desamparo) e da convocação do adulto como
reiteração e modelo da história da espécie, em que a dor e a angústia dessa
situação são as sementes das quais brotarão as emoções (1917, 1926).
continua...
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