Parte II
Mascarenhas, Eduardo, Emoções no divã de Eduardo Mascarenhas,1985.
os sete pecados
capitais se relacionam com as doenças mentais — cristianismo e psicanálise têm
vários pontos de convergência — para a psicanálise também são importantes o
respeito e a disciplina — o prazer não pode ser considerado um pecado
Psicanálise e religião, continuação..
E o que significa a palavra
pecado? Pecado vem do latim pecare, que significa “errar o alvo”, estar desorientado, sem
bússola ou com a bússola errando nas informações que oferece.
É preciso restabelecer a
verdadeira ligação entre as coisas, orientar-se, nortear-se, descobrir uma
bússola na qual se possa confiar.
Por isso, a verdadeira
psicanálise não pode conflitar com as verdadeiras religiões. Quando saímos da
superfície das aparências imediatas, descobrimos muitos pontos em comum.
Se pensarmos nos sete pecados
capitais, não com ranço puritano ou com cabeça medieval, mas de uma forma arrojada,
moderna, contemporânea, vamos encontrar neles uma espantosa semelhança com os
fatores que a psicanálise descobriu como sendo as causas de todas as doenças
mentais, desde a mais simples das fobias até as depressões suicidas, os ódios
homicidas e as mais graves esquizofrenias.
Só que a psicanálise não
considera as crianças anjinhos ou querubins. Desde o berço, a cabecinha do bebê
está a mil. Desde o nascimento a criança é extremamente generosa, mas
extremamente cruel. É sujeita a grande amores e grandes ódios. A um só tempo,
é dócil e temperamental, crédula e desconfiada, ingênua e maliciosa. E sua
malícia não se resume a aprontações inocentes; não: estas são abertamente
sexuais. Só que a maneira de a criança transar sexo é diferente daquela que
terá quando for adulta. Nos seus momentos de cólera, se tivesse meios, seria
concretamente capaz de realizar atos de extrema violência. Em síntese, já
existem na criança, em miniatura, em estado de semente, todas as virtu-
des e todas as misérias do
adulto. Essa, aliás, é nossa grandeza: já nascemos humanos. Se nossa
consciência leva 18 a 21 anos para adquirir sua maioridade, não é porque antes
fôssemos santinhos. Pelo contrário. É que éramos tão passionais, tão mais
emoção do que razão, que é preciso todo esse tempo para conseguirmos controlar
nossa natureza bravia.
Creio que o
moderno cristianismo não teria qualquer dificuldade em aceitar essas descobertas da
psicanálise.
Quem
imaginar que o verdadeiro cristianismo faz qualquer restrição ao sexo, ao
prazer, à alegria, à folia, à poesia, estará completamente enganado. O
cristianismo inclusive não se cansa de afirmar que somos seres de corpo e alma,
espírito e matéria. O cristianismo mais profundo está preocupado é com o desregramento, não
com a liberdade. Abençoa o desejo, porque ele é o motor da vida. Preocupa-se,
na verdade, com a fissura enlouquecida, o desejo desatinado, as paixões desembestadas. Não
é contra o nosso lado de bicho, mas preocupa-se com a possibilidade de que nos
torne animalescos, verdadeiras bestas humanas. O cristianismo não tem nada
contra o prazer em si, mas reconhece que a idolatria do prazer acaba nos
tornando irresponsáveis — o que empobrece o próprio prazer e ameaça a possível
felicidade.
Com isso a
psicanálise está plenamente de acordo. Ao contrário do que vulgarmente se
pensa, a psicanálise não é uma doutrina hedonista, sexomaníaca e muito menos
apologista do vale-tudo. Pelo contrário. Justamente porque a psicanálise está
a favor do prazer e do desejo, sabe que são importantíssimos o respeito e a
disciplina. Nada conspira mais contra a realização plena dos desejos do que a
bagunça, as taras e as obsessões. Psicanálise não tem nada a ver com
libertinagem ou pais bananas que mimem crianças. Mimar crianças é, no fundo,
tratá-las muito mal. É criar verdadeiros monstrinhos que, evidente mente,
quando crescerem, não serão felizes. Isso também não significa confundir
energia, respeito e disciplina com violência, repressão e arbítrio.
Entre o
autoritarismo e a anarquia, certamente existem o respeito e a energia, fraterna
e democrática.
Por estudar o
desejo, a psicanálise descobriu, inclusive, que ele é extremamente complexo,
plural, contraditório. Freqüentemente desejamos uma coisa e o contrário dela. Quando um
desejo domina a personalidade e subjuga todos os outros, não pode haver
felicidade. Por quê? Porque o prazer de satisfazê-lo trará a frustração
de tantos outros desejos e tantos outros prazeres abafados. Para a
psicanálise, uma tara é isso: um desejo — seja ele de que tipo for — que
domina ditatorialmente a personalidade, dobrando-a a seu poder e reprimindo
todos os outros. Na realidade, é uma parte da natureza humana que subjuga a
natureza humana como um todo. Isso é igual à perversão, à neurose, à loucura.
Ora, isso é
exatamente o que o cristianismo chamaria de perdição, de uso irresponsável da
liberdade, de tornar absoluto um valor relativo.
A parte ser tomada
pelo todo, o todo se subjugar a uma das partes — essa é a noção de pecado para
o cristianismo. E de doença mental para a psicanálise.
Cada pessoa é um
conjunto complexo de desejos contraditórios. Como então atendê-la?
Atendendo a cada
uma das partes, sem que, ao fazer isso, a gente se esqueça do conjunto geral
dos desejos. Como cada pessoa contém dentro de si várias pessoas, é preciso
conseguir atender, de alguma maneira, a todas. Cada parte, portanto, terá que
fazer concessões ao bem comum. Quando atendemos somente a algumas, esquecendo
das outras, estamos errando o alvo e, nesse sentido, pecando. Alguns desejos
são mimados, tratados a pão de mel, enquanto outros são completamente
esquecidos.
Suponhamos, por exemplo, uma pessoa comilona. É
óbvio que comer é bom, é gostoso, dá prazer. Porém, comer demais o tempo todo
faz mal, deixa a pessoa gorda, sem saúde, menos desejada pelas outras pessoas.
Como, então, atender ao desejo de ter um corpo mais belo e de ser maisdesejável? Esse é o
pecado da gula. Ao acertar um alvo parcial, erra o alvo total. Ao atender um
prazer, desatende a outros. Ao satisfazer um desejo, frustra outros.
Mais
um exemplo.
Suponhamos uma pessoa que só pensa em sexo. Digamos, um homem mulherengo que
não pode ver passar na sua frente uma tanga, ou uma mulher
ninfomaníacaque se entrega a qualquer um. Ora, é óbvio que fazer sexo é
gostoso, dá prazer e satisfaz um lado nosso. E óbvio também que existem muitas
pessoas atraentes nesse mundo, e é até virtude perceber isso. Visto por um
olhar fino e generoso, quem não merece ser objeto de um encanto? E até cristão
reconhecer a beleza e a magia das pessoas. Descobrir a poesia e o feitiço dos
homens e mulheres desse mundo. Entretanto, se alguém se torna sexomaníaco, não
pode realmente amar ninguém, construir uma família e curtir o imenso prazer que
é ter filhos. Sequer pode trabalhar ou levar avante uma carreira profissional.
Ora, estamos diante da gula sexual. Esse é o sentido do pecado da luxúria.
Outro exemplo
ainda. Suponhamos uma pessoa cheia de ódio, intolerância e ressentimento no seu
coração. E claro que todos sentimos raiva quando alguém pisa no nosso calo.
Essa raiva é até uma virtude, pois nos permite reagir e defender nossos
legítimos interesses. A agressividade faz parte da vida, é a energia
encarregada de defendê-la e de protegê-la em certas circunstâncias. Quando
nossos filhos são agredidos e ameaçados de morte, bendita a agressividade que
nos torna leões, capazes de enfrentar tudo e todos para defendê-los.
Entretanto, se
quase nada de relevante está acontecendo, apenas uma pessoa não nos tratou
exatamente como gostaríamos e nos tornamos um pote até aqui de mágoa... Se o
mundo não é exatamente como desejaríamos e por isso o odiamos e nos
encastelamos numa posição rancorosa, de vítimas desse mundo cruel, querendo que
todos se dêem muito mal... Se nossa
única alegria torna-se a desgraça alheia, nosso
único prazer a vingança, onde ficam as outras alegrias, os outros prazeres? Esse é o pecado da ira.
Os sete pecados capitais são
“gostosos” em si, geram um certo nível de prazer. Mas estão longe de preencher
os níveis superiores da felicidade e da realização humana. São prazeres menores que atrapalham os prazeres maiores. E essa não é só uma
questão do cristianismo. É uma questão da psicanálise. Quando qualquer dos
pecados capitais domina a mente humana como um todo, determina nosso jeito de
ser, de pensar, de sentir e de agir, estamos no perigoso terreno da perdição.
Perdição numa ruim, e não no sentido poético do termo. Perdição como o grave
risco de não mais nos
encontrarmos nem com os outros nem conosco.
Como os pecados capitais coincidem com as atitudes de
cabeça responsáveis por todas as doenças mentais, podemos dizer que a idéia de perdição e pecado, para o
cristianismo, e a idéia de
confusão e doença, para a psicanálise, têm tudo a ver.
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