INSTITUTO FREIDIANO DE ESTUDOS PSICANALÍTICOS

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Os Sete Pecados Capitais


Parte II
Mascarenhas, Eduardo, Emoções no divã de Eduardo Mascarenhas,1985.

os sete pecados capitais se relacionam com as doenças mentais — cristianismo e psi­canálise têm vários pontos de convergência — para a psicanálise também são importan­tes o respeito e a disciplina — o prazer não pode ser considerado um pecado
Psicanálise e religião, continuação..
E o que significa a palavra pecado? Pecado vem do latim pecare, que significa “errar o alvo”, estar desorientado, sem bússola ou com a bússola errando nas informações que ofe­rece.
É preciso restabelecer a verdadeira ligação entre as coisas, orientar-se, nortear-se, descobrir uma bússola na qual se possa confiar.
Por isso, a verdadeira psicanálise não pode conflitar com as verdadeiras religiões. Quando saímos da superfície das aparências imediatas, descobrimos muitos pontos em comum.
Se pensarmos nos sete pecados capitais, não com ranço puritano ou com cabeça medieval, mas de uma forma arro­jada, moderna, contemporânea, vamos encontrar neles uma espantosa semelhança com os fatores que a psicanálise des­cobriu como sendo as causas de todas as doenças mentais, desde a mais simples das fobias até as depressões suicidas, os ódios homicidas e as mais graves esquizofrenias.
Só que a psicanálise não considera as crianças anjinhos ou querubins. Desde o berço, a cabecinha do bebê está a mil. Desde o nascimento a criança é extremamente generosa, mas extremamente cruel. É sujeita a grande amores e gran­des ódios. A um só tempo, é dócil e temperamental, crédula e desconfiada, ingênua e maliciosa. E sua malícia não se resume a aprontações inocentes; não: estas são abertamente sexuais. Só que a maneira de a criança transar sexo é dife­rente daquela que terá quando for adulta. Nos seus momen­tos de cólera, se tivesse meios, seria concretamente capaz de realizar atos de extrema violência. Em síntese, já existem na criança, em miniatura, em estado de semente, todas as virtu-
des e todas as misérias do adulto. Essa, aliás, é nossa gran­deza: já nascemos humanos. Se nossa consciência leva 18 a 21 anos para adquirir sua maioridade, não é porque antes fôssemos santinhos. Pelo contrário. É que éramos tão pas­sionais, tão mais emoção do que razão, que é preciso todo esse tempo para conseguirmos controlar nossa natureza bravia.
Creio que o moderno cristianismo não teria qualquer dificuldade em aceitar essas descobertas da psicanálise.
Quem imaginar que o verdadeiro cristianismo faz qualquer restrição ao sexo, ao prazer, à alegria, à folia, à poesia, estará completamente enganado. O cristianismo inclusive não se cansa de afirmar que somos seres de corpo e alma, espírito e matéria. O cristianismo mais profundo está preo­cupado é com o desregramento, não com a liberdade. Aben­çoa o desejo, porque ele é o motor da vida. Preocupa-se, na verdade, com a fissura enlouquecida, o desejo desatinado, as paixões desembestadas. Não é contra o nosso lado de bicho, mas preocupa-se com a possibilidade de que nos torne ani­malescos, verdadeiras bestas humanas. O cristianismo não tem nada contra o prazer em si, mas reconhece que a idola­tria do prazer acaba nos tornando irresponsáveis — o que empobrece o próprio prazer e ameaça a possível felicidade.
Com isso a psicanálise está plenamente de acordo. Ao contrário do que vulgarmente se pensa, a psicanálise não é uma doutrina hedonista, sexomaníaca e muito menos apolo­gista do vale-tudo. Pelo contrário. Justamente porque a psi­canálise está a favor do prazer e do desejo, sabe que são importantíssimos o respeito e a disciplina. Nada conspira mais contra a realização plena dos desejos do que a bagunça, as taras e as obsessões. Psicanálise não tem nada a ver com libertinagem ou pais bananas que mimem crianças. Mimar crianças é, no fundo, tratá-las muito mal. É criar verdadeiros monstrinhos que, evidente mente, quando crescerem, não serão felizes. Isso também não significa confundir energia, respeito e disciplina com violência, repressão e arbítrio.
Entre o autoritarismo e a anarquia, certamente existem o respeito e a energia, fraterna e democrática.
Por estudar o desejo, a psicanálise descobriu, inclusive, que ele é extremamente complexo, plural, contraditório. Freqüentemente desejamos uma coisa e o contrário dela. Quando um desejo domina a personalidade e subjuga todos os outros, não pode haver felicidade. Por quê? Porque o prazer de satisfazê-lo trará a frustração de tantos outros desejos e tantos outros prazeres abafados. Para a psicaná­lise, uma tara é isso: um desejo — seja ele de que tipo for — que domina ditatorialmente a personalidade, dobrando-a a seu poder e reprimindo todos os outros. Na realidade, é uma parte da natureza humana que subjuga a natureza humana como um todo. Isso é igual à perversão, à neurose, à loucura.
Ora, isso é exatamente o que o cristianismo chamaria de perdição, de uso irresponsável da liberdade, de tornar abso­luto um valor relativo.
A parte ser tomada pelo todo, o todo se subjugar a uma das partes — essa é a noção de pecado para o cristianismo. E de doença mental para a psicanálise.
Cada pessoa é um conjunto complexo de desejos con­traditórios. Como então atendê-la? Atendendo a cada uma das partes, sem que, ao fazer isso, a gente se esqueça do conjunto geral dos desejos. Como cada pessoa contém den­tro de si várias pessoas, é preciso conseguir atender, de alguma maneira, a todas. Cada parte, portanto, terá que fazer concessões ao bem comum. Quando atendemos so­mente a algumas, esquecendo das outras, estamos errando o alvo e, nesse sentido, pecando. Alguns desejos são mima­dos, tratados a pão de mel, enquanto outros são completa­mente esquecidos.
Suponhamos, por exemplo, uma pessoa comilona. É óbvio que comer é bom, é gostoso, dá prazer. Porém, comer demais o tempo todo faz mal, deixa a pessoa gorda, sem saúde, menos desejada pelas outras pessoas. Como, então, atender ao desejo de ter um corpo mais belo e de ser maisdesejável? Esse é o pecado da gula. Ao acertar um alvo parcial, erra o alvo total. Ao atender um prazer, desatende a outros. Ao satisfazer um desejo, frustra outros.
Mais um exemplo. Suponhamos uma pessoa que só pensa em sexo. Digamos, um homem mulherengo que não pode ver passar na sua frente uma tanga, ou uma mulher ninfomaníacaque se entrega a qualquer um. Ora, é óbvio que fazer sexo é gostoso, dá prazer e satisfaz um lado nosso. E óbvio também que existem muitas pessoas atraentes nesse mundo, e é até virtude perceber isso. Visto por um olhar fino e generoso, quem não merece ser objeto de um encanto? E até cristão reconhecer a beleza e a magia das pessoas. Des­cobrir a poesia e o feitiço dos homens e mulheres desse mundo. Entretanto, se alguém se torna sexomaníaco, não pode realmente amar ninguém, construir uma família e curtir o imenso prazer que é ter filhos. Sequer pode tra­balhar ou levar avante uma carreira profissional. Ora, es­tamos diante da gula sexual. Esse é o sentido do pecado da luxúria.
Outro exemplo ainda. Suponhamos uma pessoa cheia de ódio, intolerância e ressentimento no seu coração. E claro que todos sentimos raiva quando alguém pisa no nosso calo. Essa raiva é até uma virtude, pois nos permite reagir e defender nossos legítimos interesses. A agressividade faz parte da vida, é a energia encarregada de defendê-la e de protegê-la em certas circunstâncias. Quando nossos filhos são agredidos e ameaçados de morte, bendita a agressivi­dade que nos torna leões, capazes de enfrentar tudo e todos para defendê-los.
Entretanto, se quase nada de relevante está aconte­cendo, apenas uma pessoa não nos tratou exatamente como gostaríamos e nos tornamos um pote até aqui de mágoa... Se o mundo não é exatamente como desejaríamos e por isso o odiamos e nos encastelamos numa posição rancorosa, de vítimas desse mundo cruel, querendo que todos se dêem muito mal... Se nossa única alegria torna-se a desgraça alheia, nosso único prazer a vingança, onde ficam as outras alegrias, os outros prazeres? Esse é o pecado da ira.

Os sete pecados capitais são “gostosos” em si, geram um certo nível de prazer. Mas estão longe de preencher os ní­veis superiores da felicidade e da realização humana. São pra­zeres menores que atrapalham os prazeres maiores. E essa não é só uma questão do cristianismo. É uma questão da psi­canálise. Quando qualquer dos pecados capitais domina a mente humana como um todo, determina nosso jeito de ser, de pensar, de sentir e de agir, estamos no perigoso terreno da perdição. Perdição numa ruim, e não no sentido poético do termo. Perdição como o grave risco de não mais nos encon­trarmos nem com os outros nem conosco. Como os pecados capitais coincidem com as atitudes de cabeça responsáveis por todas as doenças mentais, podemos dizer que a idéia de perdição e pecado, para o cristianismo, e a idéia de confusão e doença, para a psicanálise, têm tudo a ver.

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